Uma Cerâmica Nacional
Texto de Paulo Henriques
Rafael Bordalo Pinheiro chegou à Cerâmica por uma via erudita e não pelo caminho do fazer oficinal, facto determinante para a originalidade da sua obra.
Oriundo de uma família com interesses artísticos e intelectuais, filho do pintor e escultor do Romantismo, Manuel Maria Bordalo Pinheiro (1815-1880), e um de oito irmãos dos quais o mais distinto foi o pintor Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929), Rafael Bordalo Pinheiro recebeu do pai educação artística, tentou uma experiência teatral em 1860 e frequentou de modo errante e inconcluso a Academia de Belas Artes de Lisboa entre 1861 e 1871.
Quando em 1883 faz primeiros ensaios de cerâmicas na Fábrica de Sacavém, tinha já firmada uma sólida carreira como desenhador e caricaturista, com obra publicada no Calcanhar de Aquiles e na Berlinda, 1870, no Álbum de Caricaturas: Frases e Anexins da Língua Portuguesa, 1875, ano em que cria o célebre Zé-Povinho, prosseguindo com O Mosquito, 1876, Psit… e O Besouro, 1877 e 1878, No Lazareto de Lisboa e no António Maria, 1879, e no Álbum das Glórias, 1880. Esta actividade manter-se-á sem interrupção até final da vida com os periódicos Pontos nos ii, 1889, e A Paródia, 1900.
A Fábrica de Faiança das Caldas da Rainha teve estatutos firmados em Outubro de 1883 e escritura lavrada em 9 de Agosto de 1884, sociedade anónima cujos accionistas fundadores foram Feliciano Bordalo Pinheiro a quem caberia a gestão patrimonial da empresa e Rafael Bordalo Pinheiro, responsável pelas questões técnicas e artísticas .
Segundo os estatutos, a Fábrica deveria «explorar a indústria cerâmica no ramo especial das faianças» cabendo-lhe produzir «produtos de cerâmica ornamental e de revestimento e louça do tipo que se manufacturava nas Caldas, objectos da mais fina faiança estampados com gravuras originais para usos ordinários e louça ordinária para uso das classes menos abastadas».
A sua produção deveria incluir materiais de construção, tijolo, telhas vidradas e azulejo, produzidos desde 1884 e utilizados na própria construção dos espaços técnicos e comerciais da Fábrica, louça decorativa que se começou a produzir em meados de 1885 e finalmente, louça utilitária, aposta arriscada desde 1888.
A criação da fábrica de cerâmica num centro de antiga tradição e com uma produção muito singular como a das Caldas da Rainha inscrevia-se em dois vectores determinantes para a vida portuguesa deste período, tanto económica como cultural, o do progresso nacional ligado ao desenvolvimento dos sistemas tecnológicos de produção de bens e o da procura dos referentes identitários do ser português, sendo este um problema fulcral para os intelectuais portugueses do último quarto do século.
Qualquer uma destas questões emergiu com o Liberalismo a partir de 1822 e ganhou foro programático com a sua afirmação definitiva a partir de 1834, mas cinquenta anos depois a industrialização e o desenvolvimento das comunicações em Portugal eram já realidades que permitiram aos intelectuais portugueses cotejar o progresso nacional com o internacional nas Conferências do Casino, em 1871, e aos artistas importar uma estética contemporânea, a do Naturalismo, divulgada a partir de 1879 com o regresso dos pintores Silva Porto e Marques de Oliveira, bolseiros do Estado em Paris, e instituída em movimento geracional nas exposições do Grupo do Leão, a partir de 1881.
Deste Grupo destacaram-se as personalidades de Silva Porto como «divino mestre», José Malhoa, João Vaz, António Ramalho, Columbano Bordalo Pinheiro e Rafael Bordalo Pinheiro, o mais velho de todos eles. Na senda de uma inquietação vinda do Romantismo, procuraram-se então as origens genuínas da nacionalidade através do conhecimento do povo e das suas tradições e da reavaliação dos ciclos históricos gloriosos da vida da nação.
A escolha das Caldas da Rainha resultou não só da sua longa tradição cerâmica como também das características próprias dessa produção, carregada de imaginário e impulso comunicativo. A partir da década de 1820 é possível identificar aí a figura mítica de D. Maria dos Cacos, produtora e comerciante de figuras em barro com vidrados monócromos, pessoas e animais com função de garrafas, paliteiros e castiçais, cujos modelos e oficina cedeu em 1853 a Manuel Cipriano Gomes dito o Mafra (1811-1905), grande ceramista que será honrado por D. Fernando II, em 1870, com o estatuto de fornecedor da Casa Real e a concessão do uso da coroa sobre a marca das peças.
Convergindo com o gosto pela figuração antropomórfica e animalista já radicado nas Caldas da Rainha, Manuel Cipriano Gomes Mafra assimilou o gosto cosmoplita dos revivalismos das faianças de Bernard Palissy (c. 1510-1590), ceramista com escritos reeditados em Paris em 1844 e modelos retomados principalmente por Charles-Jean Avisseau (1795-1861) e por Joseph Landais (1800-1883), peças das manufacturas de Tours apresentadas com grande êxito na secção francesa da Exposição Universal de Londres em 1851 . José Palha terá trazido de Paris ao ceramista caldense alguns desses modelos, possivelmente os designados na origem como “rustiques”, com exuberantes ornatos em relevo moldado representando folhas, frutos, flores, peixes, insectos, répteis e batráquios, elenco que instituiu a decoração cerâmica dita à Palissy. Alvo da atenção da família real e com uma produção abundante e diversificada, Manuel Cipriano Gomes Mafra foi, tanto pelo sucesso comercial como pelas propostas estéticas, o imediato antecessor de Rafael Bordalo Pinheiro.
Este encontrava-se ainda em 1884 a pintar algumas peças em pó de pedra na importante Fábrica de Sacavém, a mais moderna à época em Portugal.
São pratos dedicados, um dos quais ao actor João Rosa, assinado e datado de 21 de Março de 1884, com o texto ao fundo em caligrafia alongada e a figura do actor como cardeal Richelieu brandindo uma espada para a ponta da qual avança, assumidamente menor, Rafael Bordalo Pinheiro montado num gato e oferecendo um ramo de flores. Outro prato também em pó de pedra, mas realizado já na Fábrica Gomes de Avelar nas Caldas da Rainha, é dedicado ao actor Augusto em Maio de 1884, e tem representado no covo a figura em pé, de casaca, pisando um amor perfeito e a segurar dois ramos de flores, tendo a aba preenchida com a caligrafia cursiva da dedicatória. As composições decorativas, inesperada uma e convencional a outra, radicam no universo do desenho e do grafismo em que o autor já se notabilizara e o facto do suporte ser cerâmico parece não ter influenciado a sua concepção material.
A assimilação da linguagem específica da cerâmica evidencia-se depois, em peças já de produção da Fábrica das Faianças e que se inscrevem no gosto à Palissy mas que, como veremos, apontam estéticas bem diferentes.
Não sendo de estranhar num homem com talento e extensa obra gráfica, Rafael Bordalo Pinheiro aplicou a prática do desenho à concepção das suas peças cerâmicas, tanto para apontamentos de memória de um pormenor como para estudos próximos de composição final, tornando-se instrumento essencial na concepção dos modelos, existindo hoje algumas dessas páginas no espólio da actual Fábrica de Faianças Rafael Bordalo Pinheiro nas Caldas da Rainha e outros na colecção do Museu Rafael Bordalo Pinheiro em Lisboa.
Com efeito, tanto o desenho como a modelação do barro a partir de modelos naturais, essencialmente plantas e animais, foram introduzidos como prática estruturante para a produção dos protótipos da nova Fábrica, desenvolvidos não só pelo artista mas também pelos operários especializados na conformação das peças, desejando-se que fossem transmitidas aos futuros aprendizes.
Fazia-se eco da ideologia do movimento Arts and Crafts, gerado em Inglaterra com a reacção do jovem William Morris (1834-1896) à massificação industrial dos objectos de uso quotidiano, apresentados na Grande Exposição no Palácio de Cristal em Londres, em 1851, e com o crescente anonimato dos homens e mulheres que os produziam, apagando-se qualquer marca autoral e a presença humana essencial que lhe estava subjacente.
Por outro lado, desenvolvia-se o projecto utópico da construção estética do quotidiano como um todo e para a qual, segundo a perspectiva de Ramalho Ortigão, «arquitectos, pintores e escultores se consagram, paciente e humildemente, a desenhar modelos para todas as indústrias» concluindo com uma reflexão sobre a realidade nacional que «Rafael era pois o único homem, mas era-o de um modo completo, para intervir em Portugal numa indústria de arte, remanejando-a em concorrência com as indústrias similares do resto da Europa e fazendo dela um novo elemento de riqueza e glória nacional» .
Para além de inscrever uma perspectiva moderna e nacional num território tradicional da indústria cerâmica, Rafael Bordalo Pinheiro alargou a sua actividade ao ensino formal, articulando a indústria com a aprendizagem dos ofícios da cerâmica pelos alunos da Escola Industrial das Caldas da Rainha, contrapartida ao apoio que o Governo dava à Fábrica e prática inovadora na pedagogia profissional em Portugal.
A «glória nacional» desejada pelo crítico de arte passava igualmente pela instituição de modernos símbolos identitários da nação e, de facto, muitas cerâmicas se criaram na Fábrica das Faianças que cumpriram contemporaneamente esta função, vindo hoje a integrar o património colectivo da cultura artística portuguesa.
Sucedendo à produção inicial de materiais de construção, as primeiras peças decorativas em faiança surgiram a partir de meados de 1885, podendo caracterizar-se, grosso modo, como à Palissy. Com efeito nelas existe o típico recurso a ornamentações modeladas em relevo de volumes perfeitos e com acabamento num mimetismo naturalista representando motivos vegetais – legumes, cereais, flores, frutos e algas – e animalistas apresentados tanto vivos – pássaros, aves de capoeira, insectos, batráquios e répteis – como mortos e servindo de alimento – peixes, mariscos, bacalhaus secos e peças de caça.
Contudo, mais do que estes ornamentos avulsos sobre as peças ou a sua formatação total por acumulação, numa lógica que não estará muito longe dos delírios maneiristas de Arcimboldo, Rafael Bordalo Pinheiro não ilude a matriz cerâmica evidenciando sempre a tipologia do objecto – prato, jarra, pote, terrina, bilha – dando-lhe autonomia visual em acabamentos com um mesmo procedimento, ora revestindo-o integralmente com um esmalte colorido homogéneo ou com escorridos, ora aplicando, embora com menor frequência, texturas reais como musgados e areados.
É sobre estes suportes preparados que se aplicaram, com transparência conceptual e elegância, os ornatos moldados: uma haste singela com flores ou frutos que pende ou pousa no fundo de um prato ou é disposta em coroa sobre a aba; ramos mais elaborados de flores e frutos que ocupam o centro ou, com maior complexidade e autonomia formal, se transformam em verdadeiras naturezas mortas, lembrando os bodegons tão caros à pintura espanhola, compostos os de Rafael Bordalo Pinheiro sobre monumentais pratos de suspensão.
O artista, ao ostentar a forma e a matéria cerâmica como fundo a breves apontamentos vegetalistas, representados num mimetismo hiperrealista, cria diálogos visuais requintados que lembram estéticas orientalizantes, nomeadamente em influência do Japão. De facto, esta fez-se sentir na Europa a partir da abertura das fronteiras daquele País ao Ocidente em 1854 e divulgou-se em França na década de 1870 com a invasão de produtos ornamentais japoneses que depois conduziriam a assimilações pelo gosto europeu numa moda generalizada pelos japonesismos que, como se compreende, teve ressonância também em Portugal.
Se por um lado este gosto parece percorrer algumas destas peças, por outro poderíamos identificar conceitos caros ao Naturalismo, não só na convocação de elementos vegetalistas apresentados de forma mimética e na ruralidade dos referentes mas também na sugestão que é transmitida da fixação de um momento, o que em fotografia se designa por instantâneo, aqui registado pela cerâmica, o gesto casual de guarnecer um objecto do quotidiano com uma haste ou ramo de flores ou frutos.
Articulando de novo a tradição figurativa da cerâmica das Caldas da Rainha com esta espontaneidade desejada pelo Naturalismo, Rafael Bordalo Pinheiro inscreve em algumas das peças um sentido narrativo do quotidiano, com grande vivacidade e verosimilhança, capacidades desenvolvidas na sua prática anterior de desenhador humorista.
A caixa esférica coberta com a voluptuosidade densa das folhas de um ramo de nêsperas, cuja pega da tampa é um pequeno símio que rói um fruto, poderia ser perfeitamente uma cena doméstica num interior português do século XIX, o pequeno macaco trazido de África integrando o quotidiano familiar como divertido animal de estimação.
As matrizes nacionalistas revelam-se também na escolha dos motivos decorativos sejam flores como girassóis, rosas, jarros, magnólias, malmequeres e brincos de princesa; sejam frutos em ramos ou isolados como nêsperas, castanhas, cerejas, pêssegos e uvas; legumes como couves, pepinos, pimentos, nabos, tomates, alhos ou batatas; animais vivos como gatos, cães, pombas, macacos, galinhas, patos, rãs, escaravelhos, abelhas, serpentes e lagartos; ou animais mortos e apresentados como alimento tal como lagostas, mexilhões, ostras, garoupas, gorazes, robalos, sardinhas, enguias, bacalhaus secos e peças de caça.
Estes elementos, podendo ser inscritos na peça cerâmica com autonomia de apontamento singelo, integram também elaboradas naturezas mortas em composições frontais que, lembradas da pintura, se articulam então com outros motivos de referência doméstica, rural ou marítima, como panos brancos e redes de pesca, cestos e garrafões encanastrados e canastras de varinas mostradas em rigorosa transcrição material, na íntegra ou seccionadas.
A natureza morta, esse género pictórico, é composta no suporte cerâmico do prato, o mesmo acontecendo com a paisagem, aplicada nas representações de espaços rústicos, percorrida por aves de capoeira ou, em alusão mais subtil, constituindo fundo de céu para pássaros em voo ou pousados em ramos, ou de água para peixes e batráquios.
A cenografia mimética, estratégia naturalista por excelência, ganha máxima eficácia em peças que simulam objectos reais como que esquecidos no espaço quotidiano, caso das canastras e alcofas com peixes, sendo especialmente programática uma alcofa de esparto para suspender, com dois bacalhaus secos e cebolas, percorrido o conjunto por uma réstia de alhos, ostentação ilusionista de ingredientes tradicionais, espécie de panóplia nobilitada da cozinha portuguesa.
A cerâmica integra também o quotidiano, através de réplicas fiéis das realidades materiais em que o barro vidrado mima com grande rigor cestos de vime ou de verga em escala natural, abanos de esparto ou abanadores de vime como bilheteiras de suspensão parietal, um chinelo de pano episodicamente visitado por um rato ou, afastando-se da matriz rural e evidenciando as vivências cosmopolitas de Rafael Bordalo Pinheiro, uma delicada luva de senhora formatando uma taça ou uma cartola de homem com as luvas pousadas dando forma a um vaso, possível lembrança do fim de um jantar num café na Baixa de Lisboa ou de uma noite de ópera em S. Carlos.
Explorando os valores específicos da cerâmica das Caldas da Rainha, nas suas técnicas e imaginários, Rafael Bordalo Pinheiro analisa-a também como referência profunda de um cultura popular, logo matriz de um gosto e de uma arte nacional, numa perspectiva oriunda do Romantismo e de máxima pertinência ideológica para o Naturalismo.
Disso é exemplo a série de peças que reinterpretam directamente o tema das relevos moldados e aplicados sobre formas de olaria como, por exemplo, a jarra com três asas e decorada com rosetas e um singelo ramo ondulante com vidrado monócromo à maneira da cerâmica arcaica das Caldas, mas agora azul forte, ou o belíssimo perfurador em forma de cabaça com o bojo percorrido por rosetas de molde, alternando maiores e mais pequenas, e o gargalo casualmente percorrido por um lagarto.
Citam-se ainda, com maior austeridade, as formas absolutas da olaria tradicional portuguesa sujeitando-as contudo a formalismos modernos tanto na configuração, alongamentos nas proporções dos contentores ou ângulos agudos nas asas, como na aplicação de esmaltes lisos e escorridos e pontuais aplicações decorativas como pequenas rãs ou ramos com flores ou frutos, tendo-se mesmo realizado nos ourives de Lisboa aplicações de prata com ornatos e letras recortadas, consumação do máximo paradoxo ao se nobilitar formas inspiradas na olaria popular com guarnições de metal nobre.
Neste gosto realizaram-se na Fábrica de Faianças moringues, jarros, canecas, bilhas bojudas com uma asa, bilhas com duas asas, tampa e púcaro, e mesmo peças com tipologias menos comuns de uso rural como os alcatruzes, modestos vasos que carregam a água do poço nas correntes da nora.
Por esta via se inscrevem também os modernos sinais identificativos de Portugal, reinterpretando as formas antigas da olaria, alvo de estudos sistemáticos no mesmo período por Joaquim de Vasconcelos, manancial de objectos ancestrais com uma evolução lenta que, por isso, eram a garantia da proximidade histórica das origens mais genuínas da Nação.
Outra via deste nacionalismo finisecular foi a revisitação da História pátria, evocando os seus momentos gloriosos com especial ênfase na gesta heróica dos Descobrimentos. Disso foi exemplo a participação de Rafael Bordalo Pinheiro na Exposição Universal de Paris de 1889, onde as suas cerâmicas obtiveram assinalável sucesso e para onde concebeu a decoração do Pavilhão de Portugal, sendo-lhe atribuída a Legião de Honra do Estado francês.
Para esta decoração optou por evocações rústicas e historicistas de Portugal, na ostentação de referências etnográficas e gastronómicas, e em reinterpretações da arte do reinado de D. Manuel e, por imposição oficial, de D. João V . Dela subsistiram exemplares de azulejos aplicados na zona de restauração, com relevos toscamente modelados, laçarias circulares de memória hispano-árabe mas «reproduzidos da Batalha» com o centro ocupado por quatro escudos de Portugal, os relevos destacando-se ainda mais do fundo branco por um tom vinado de manganês, muito escuro.
O revivalismo das formas artísticas que serviram o reinado de D. Manuel será especialmente variado na produção de azulejo da Fábrica de Faianças, repetindo os motivos hispano-mouriscos de laçarias geométricas com fitas entrelaçadas, polígonos estrelados e «pés de galo», embora conformando-os em relevo muito alto e não apenas em discreta aresta, técnica aplicada também em motivos já de gosto renascentista, simulando têxteis, ferroneries e parras, copiando peças únicas como a platibanda recortada de espigas de milho alternando com uvas e parras ou o azulejo com a Esfera Armilar, originalmente produzidas em Sevilha no início do século XVI para o Paço Real de Sintra.
É neste contexto estético e em simultâneo com a decoração neo manuelina feita para o Pavilhão de Portugal na Exposição Colombiana de Madrid, em 1892, que Rafael Bordalo Pinheiro concebe, ainda em 1891 , uma das suas peças mais programáticas, a célebre Talha Manuelina, minuciosamente descrita por Fialho de Almeida após visita ao ateliê do artista , e adquirida logo em 1893 pelo rei D. Carlos.
Com desenhos preparatórios na colecção do Museu Rafael Bordalo Pinheiro, a obra não se distanciou do projecto inicial que associava, num eclectismo profuso, as referências à olaria tradicional no grande bojo inspirado nas bilhas de uso popular, guarnecida com uma barra de arcaria manuelina, interrompida por quatro reservas, duas sob as asas com cenas marítimas de navegação, outras duas, as de face, com os retratos do Infante D. Henrique e do poeta Luís de Camões. Estas reservas foram coroadas com esferas armilares rematadas com a Cruz de Avis de onde arrancam cordames em disposição simétrica configurando as asas. No lugar onde deveria existir um bocal ou uma tampa surge de modo inesperado, entre maqueta de grande arquitectura e peça de ourivesaria, um templete hexagonal com arcaria manuelina e uma rústica cobertura de telha lusa com figuras aladas aos cantos e rematada no topo por outra Esfera Armilar com a Cruz de Avis.
A base não desmerece da grande elaboração da talha, plinto quadrangular assente em quatro leões sentados, com os cunhais formatados em cantaria lavrada e rematada por escudos de Portugal rodeados de algas, e no centro de cada face, suspenso de cordames e contra fundo de azulejo idêntico ao realizado para Paris em 1889, as armas da rainha D. Leonor.
O inexcedível virtuosismo técnico da peça é indiscutível, servindo um programa iconográfico nacionalista de pendor enciclopédico que, segundo a descrição de Fialho de Almeida, associa «cântaros que as raparigas de Coimbra levam à fonte», «píxide que Gil Vicente tivesse feito sobre desenhos de Garcia de Resende», a «inverosímil expressão de Custódia de Belém», «capelitas góticas com perspectivas de colunelos, e fundo de ogiva, à jour, mui delicados…» e, referindo os grupos escultóricos da Paixão de Cristo, «estatuetas microscópicas, reproduzindo parte da escultura que Bordalo já fez para o Bussaco» .
É óbvio o desajuste de toda esta construção plástica ao material cerâmico levado aqui a absurdos materiais de minúcia miniaturista, estruturalmente inadequados, com exemplo evidente na fragilidade física das asas que, por código funcional, deveriam garantir o manuseamento da peça. Do mesmo modo é claro o desajuste entre a decoração modelada e o objecto a decorar, com detalhes arquitectónicos tratados com minúcias de miniatura e a associação desconexa das escalas, a talha como objecto de dimensão doméstica e o remate arquitectónico, referindo uma escala monumental.
No mesmo espírito realizará o ceramista, em 1896, outra «jóia» de virtuose técnica e eclectismo formal, o perfumador árabe, peça que dedicou ao conselheiro Júlio de Castilho, em gesto de gratidão pela intervenção deste numa das graves crises financeiras que afligiram a Fábrica das Faianças.
O tema dos leões, agora afrontados, reaparece na secção inferior do bojo revestido por motivos da azulejaria hispano-mourisca, estando a secção superior guarnecida por uma delicadíssima superfície rendilhada imitando filigrana, técnica simulada com finos fios de barro configurando também as duas asas. No bojo, edículas centrais reproduzem em miniatura de rigorosa minúcia duas cenas dos Passos da Paixão destinadas ao Buçaco. A tampa, calote semi-esférica que remata o bocal cilíndrico, retoma os temas hispano-mouriscos e tem a pega em forma de leão sentado.
Como a talha manuelina, o perfurmador árabe parece documentar uma atitude contrária aos conceitos de coerência formal, economia de meios técnicos e unidade entre forma e decoração que, defendidos pelos teóricos do movimento Arts and Crafts, interessaram Rafael Bordalo Pinheiro em peças correntes.
Esta preocupação moderna de qualificar a produção industrial para grande uso das populações, democrático, neste caso através da concepção de bons objectos cerâmicos, técnica e esteticamente, revelou-a Rafael Bordalo Pinheiro nas linhas que concebeu para serviços de jantar, desenhadas com preocupações formais formatadas pelos processos industriais de fabrico e decoração, em pó de pedra e ornamentadas com motivos estampados, em geral, aludindo aos referentes nacionalistas ou pintados, em gosto mais internacional próxima da Arte Nova.
De facto, perante peças que se desejavam de grande valor sumptuário e destinadas a um público do mais alto estatuto social, o artista convoca uma inexcedível virtuose técnica e acumula referências eruditas em associação ecléctica profusa, com um efeito final grandiloquente e enfático, de difícil harmonia formal e duvidosa eficácia artística.
O mesmo espírito percorre a célebre jarra A Beethoven, actualmente no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, delírio neo-rocócó com 2,80 metros de altura e complexo programa iconográfico alusivo àquele músico universal, realizada entre 1896 e 1898 e destinada a Carlos Relvas em cuja Casa dos Patudos não encontrou lugar devido à dimensão, sendo depois levada para o Rio de Janeiro numa das viagens de Rafael Bordalo Pinheiro, orgulhoso de aí apresentar tão temerária realização técnica, imensa e de absurda decoração miniaturista, que acabou por oferecer ao Presidente da República do Brasil.
Esta peça ambiciosa, técnica e artisticamente, tem um pendor cosmopolita internacional, o revivalismo de um gosto francês do século XVIII, de expressão grandiloquente sugerida pela própria intencionalidade da obra, uma homenagem A Beethoven, tema ajustado aos conhecidos interesses musicais de Carlos Relvas.
Esta peça monumental entronca os revivalismos eclécticos de estilos internacionais que associam a complexidade e a sensualidade de composições barrocas – formas dinâmicas e descrições miméticas de anatomias, rostos e animais, plantas e ondas – com iconografias vindas do Maneirismo e do Barroco e do Rococó – cartelas, enrolamentos de acanto, grinaldas de flores e frutos, a par de confrontos entre quimeras e putti, tritões e nereidas, faunos e ninfas.
O mesmo elenco formal e figurativo servirá de novo uma memória portuguesa das glórias dos Descobrimentos, como sucede no «centro de mesa renascentista» surpreendente taça que se ergue nos enrolamentos torsos das caudas de dois monstros marinhos cujas cabeças formam as asas, e que é percorrida pelo gesticulado frenético de personagens com caudas de acantos, possíveis Nereidas e Tritões , alusão directa ao Mar português.
O mesmo tema surge exuberante no «candelabro renascentista», tumultuosa construção que ascende sobre golfinhos com caudas entrelaçadas, sucedido por dois nus de alusão mitológica, um homem e uma mulher, um bojo decorado com azulejos hispano mouriscos de onde arrancam quatro lumes, em bizarra metamorfose dos troncos de Atlantes e Nereidas em movimentados acantos ou vagas marítimas, um lume mais elevado percorrido por putti e rematado por monstros marinhos.
A vocação destas peças para sofisticados ambientes contemporâneos, marca do gosto mais valorizado pelas elites sociais portuguesas, é clara na montagem de relógio realizada por Rafael Bordalo Pinheiro para o editor Manuel Gomes, apoteose marítima de Tritões e Nereidas entre ondas agitadas e coroada por uma águia que traz em voo uma deusa com um archote sob uma faixa esvoaçante com a inscrição de parte da frase de Camões “(cantando) espalharei por toda a parte”.
Este revivalismo dito renascentista, de facto com motivos mais próximos do Maneirismo, foi considerado suficientemente sofisticado para integrar os mais exigentes programas decorativos das melhores casas de Lisboa, ficando como exemplo o friso de lareira que, por indicação do grande ceramólogo José Queiroz, foi produzida na Fábrica de Faianças em 1903 para o palacete do maestro Miguel Angelo Lambertini, construído na Avenida da Liberdade em Lisboa, 1900, num gosto lembrado do Renascimento italiano, obra requintada do arquitecto veneziano Nicola Bigaglia.
Quase uma década antes, cerca de 1892, Rafael Bordalo Pinheiro realizou uma decoração especialmente notável para a sala de jantar da residência Beau Séjour em Benfica, uma grande fonte lavabo e um lustre, servidos pelos naturalismos veristas, entre Palissy e Caldas da Rainha, em grande profusão de frutos, flores, mariscos, peixes e, como definitiva imagem de marca, alguns lagartos e rãs. Embora tratando-se de uma criação anterior, este conjunto dá-nos notícia de outras exigências de gosto numa burguesia abastada, os tidos por convenientes para uma habitação da alta burguesia, quase de veraneio pela sua situação periférica em relação ao centro mais cosmopolita de Lisboa, e norteada por um projecto arquitectónico nacional.
Para as duas fachadas da requintada Tabacaria Mónaco, uma virada ao Rossio e outra à rua 1º de Dezembro, no centro elegante de Lisboa, desenhou Rafael Bordalo Pinheiro, em 1891, cenas com rãs, cegonhas, serpentes e pássaros, motivos que de novo apontam referentes rústicos mas que aqui ganham valor de episódios humanos contados em forma de fábulas, registados numa desenvolta pintura a azul de cobalto sobre o vidrado branco, obra que poderá ter tido como ensaios alguns dos azulejos na colecção do Museu como o da Velha Maria em voo e uma rã pousada à beira de um charco.
Quando Rafael Bordalo Pinheiro chegou à Cerâmica já a sua criação no domínio do grafismo e da caricatura, iniciado em 1870, tinha reconhecimento público pela perspicácia da observação, a originalidade do olhar e a pertinência dos comentários. Questão não só de prática artística mas sobretudo de temperamento crítico, o autor reencontra na cerâmica das Caldas da Rainha muito dos valores que havia explorado no desenho de humor e comentário político: a vontade de descrever personagens e contar histórias, a ironia e o disparate, finalmente uma irreprimível pulsão comunicativa.
Assim o desenhador passa ao ceramista muitas das suas criações de que a mais emblemática foi o Zé Povinho, personagem criada em 1875, logo secundada pela Maria da Paciência, e todo um elenco de figuras populares como varinas, polícias, curas ou sacristães, e burguesas como janotas e elegantes, e vultos da vida política e social do país.
A passagem do desenho à cerâmica teve consequências na concepção das imagens, não só pela passagem da bi para a tridimensionalidade da forma mas sobretudo pela pesquisa que Rafael Bordalo Pinheiro desenvolveu sobre os valores expressivos próprios à nova disciplina, facto bem evidente no carismático auto-retrato que de si fez em forma de apito, em 1903.
Este imenso elenco de personalidades, retrato colectivo da sociedade portuguesa finisecular, foi transposto para vários objectos funcionais como apitos, garrafas, caixas, cinzeiros ou tinteiros, mas ganharam autonomia nas originais figuras de movimento.
Estas figuras permitiam às personagens ter movimentos reais que, de algum modo, mimavam o próprio movimento da vida e do quotidiano. Geralmente eram construídas com peças diferentes pousadas entre si, a primeira composta pela base e pés da figura terminando num cone modelado no barro onde assentava instável a segunda, a das calças ou saia, tronco e cabeça da figura, podendo ainda o tronco ser separado e rematado por outro cone onde assentava a cabeça da figura.
A estrutura instável de mínimos pontos de apoio levava a que, ao ser tocada, cada figura se movimentasse de modo próprio, executando divertidos meneios de corpo e de cabeça que acrescentavam à caracterização jocosa da personagem modelada e vidrada um valor adicional de imprevista comicidade.
Esta passagem do desenho de humor à cerâmica, feita com grande inteligência plástica, é desenvolvida noutro sentido pela releitura dos códigos funcionais dos objectos cerâmicos, bem clara na utilização de escarradores e penicos, utensílios com estatuto utilitário menos nobre, para aí fazer representar, em tom mordaz e jocoso, personalidades desprezíveis como o agiota, enriquecido pelos juros elevados cobrados a pessoas em carência financeira, ou John Bull, figura emblemática do Reino Unido, o país com a aliança mais antiga com Portugal e que tinha infligido uma imensa humilhação nacional com o Ultimatum de 1890.
No mesmo âmbito, outras personagens o inspiraram para a criação de objectos simbolicamente funcionais, as garrafas representando Gungunhana Antes e Gungunhana depois, c. 1895, o chefe africano que resistiu ao poder colonial português, ou o paliteiro com a imagem do visconde de Faria, Comissário de Portugal à exposição Universal de Paris, em 1900.
O mesmo sentido de ironia, construído sobre a adequação do objecto funcional á caricatura social ou política, inspirou a notável galeria de chineses, toureiros, polícias ingleses, senhoras e janotas que ganharam forma em bules e chávenas de chá produzidos na Fábrica de Faianças a partir de 1897, e que podiam, de facto, ser usadas no quotidiano.
Com a encomenda pelo ministro Emídio Navarro, em 1886, dos grupos escultóricos da Paixão de Cristo para as capelas do Bussaco, obra nunca entregue por inacabada, Rafael Bordalo Pinheiro inicia a sua prática em escultura cerâmica de grande dimensão e, novamente por ser oriundo de um mundo exterior ao da Escultura, traz para esta arte questões de maior modernidade que os escultores portugueses coevos nunca puderam colocar, formados que eram no academismo nacional.
Desde logo a questão da policromia na escultura, acentuando valores de mimetismo de carnações e matérias, depois a presença de um imaginário exótico e orientalista que a narrativa bíblica dos episódios da Paixão propiciava, situações bem evidentes nos grupos actualmente conservados no Museu de José Malhoa nas Caldas da Rainha.
Será sinal de exotismo mas sobretudo do decadentismo finisecular a estátua de um jovem negro em pé, com tamanho natural, vestido apenas com um saiote de fitas, peça de excelente modelação e policromia, agora não pintada a frio mas resultando da fusão dos vidrados. Rara na produção da Fábrica das Faianças, esta peça teria sido concebida para integrar o espaço aberto de jardim, hipótese mais credível tendo em conta a quase nudez da figura, ou no interior de uma sala eclecticamente decorada, figura exótica de aparato ladeando uma porta, em alusão a outras raças, muito frequente na Europa cosmopolita e elegante desde o século XVIII, prolongando-se no final do século XIX em marcações de gosto pompier, obviamente caro a Portugal com as suas colónias portuguesas em África.
Fora destes formatos de maior dimensão, Rafael Bordalo Pinheiro executou uma série de bustos, convencionalmente seccionados pelos ombros e pelo peito e assentes em peanhas, terracotas simples ou com policromias a frio, retratos naturalistas de figuras populares como o Pae Paulino, de 1894, ou a cabeça de jovem negra e de ilustres personalidades portuguesas como o de Guilherme de Oliveira, 1895, do Dr. Sousa Martins, de 1899, de Eça de Queirós, de 1901 ou de Tito de Carvalho, de 1902.
Peça singular é um notável retrato de senhora, possivelmente o da actriz Maria Visconti, datado de 1899, de requintada modelação, a estrutura do busto movimentada pela postura lateral da cabeça, liricamente olhando para longe, e o gesto da mão que, sobre o lado esquerdo do peito, segura o véu que lhe envolve a cabeça, memória póstuma desta bela mulher falecida no ano anterior e que foi alvo do grande afecto de Rafael Bordalo Pinheiro.
Embora permanecendo modelos anteriores na produção corrente da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, criados nos moldes estéticos do Naturalismo e dos Revivalismos eclécticos, nacionais e internacionais, Rafael Bordalo Pinheiro entra no século XX e nos últimos anos da sua vida com as propostas mais modernas no universo da Cerâmica em Portugal, de clara definição Arte Nova.
Surpreende, pela pujança plástica e a actualidade da linguagem, a taça com libélulas de 1901, contentor oval formatado pelas amplas folhas, rematadas no seu eixo maior com grandes asas constituídas por voluptuosos malmequeres, flores que se repetem no eixo menor, servindo de fundo a uma imensa libélula. O modo fluído como se configura a taça e como esta recebe a decoração modelada é de grande requinte formal e icónico. As linhas orgânicas e os referentes naturais típicos da Arte Nova de inspiração francesa como as flores com caules grossos e sinuosos e o esquematismo gráfico dos grandes insectos, são decorados na antiga técnica de faiança, numa paleta de verdes, amarelos e brancos lisos em contraste com as matérias ricas das asas das libélulas, com uma pintura que imita os irisados que lhe são próprios.
O mesmo se poderá dizer dos azulejos com gafanhotos finamente modelados insistentes em ritmos gráficos de curva e contracurva e criando um padrão quase abstracto de diagonais; e das belas placas com borboletas afrontadas contra um espiga de trigo, referência rústica ao trigo e aos animais que o destroem ou o consagram.
Nestas primeiras décadas do século, integrando a campanha de qualificação dos espaços comerciais urbanas, entre os quais as padarias foram alvo de muito especial atenção, produziu-se na Fábrica de Faianças a decoração cerâmica da Panificadora de Campo de Ourique, cujos vãos foram guarnecidos com composições únicas com caniços, papoilas, pássaros e letras, guarnecidas com frisos de azulejos de repetição com uma borboleta inscrita num círculo entre espigas, de placas com borboletas afrontadas entre espigas e, aplicados nos balcões, azulejos com gafanhotos sobre espigas.
O acerto da concepção plástica, em sintonia com o mais moderno gosto decorativo internacional, não rejeitava contudo as imagens do campo e das riquezas rústicas do país.
As inquietações da Arte Nova não se manifestaram nas cerâmicas produzidas nas Fábricas de Faianças sob a orientação de Rafael Bordalo Pinheiro apenas pelas morfologias destes objectos que viriam a constituir a sua expressão mais divulgadas em contexto internacional e no campo mais amplo das Artes Decorativas.
Outras investigações em torno do valor expressivo abstracto das matérias cerâmicas, sejam os das pastas sejam os dos vidrados, mesmo que nunca desenvolvidas em profundidade por Rafael Bordalo Pinheiro, encontram eco em peças de dimensão menor como a jarra com peixe, com decoração com cores de mufla, já de 1901, em que os vidros esmaltes e tecnologias cerâmicas são manipuladas no sentido de gera inesperadas visualidades.
Na taça das libélulas o autor simulou esses valores na pintura majolicária das asas do insecto imitando os efeitos dos vidrados irisados tão procurados pelos ceramistas internacionais da época. Noutras peças de menor dimensão, possivelmente apenas de ensaio, vemos que se tentaram experiências de cozeduras em atmosferas redutoras, de vidros e esmaltes com incompatibilidades capazes de produzir craquelês, apontando-se deste modo uma das vias mais promissoras da cerâmica moderna do princípio do século XX, a da exploração matérica abstracta na senda das antigas tecnologias do Oriente.
Infelizmente sem resultados consequentes na obra cerâmica de Rafael Bordalo Pinheiro, suspensa pela morte em 1905, algumas destas propostas estéticas assentes na revelação experimentalista dos materiais e das tecnologias cerâmicas não seriam retomados pelo filho Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro (1867-1920), responsável pela Fábrica entre 1906 e 1908.
Caberá contudo a Costa Motta Sobrinho (1877-1956) dar efectiva continuidade moderna às propostas da Cerâmica de Rafael Bordalo Pinheiro. Tal como este, Costa Motta construirá uma obra cerâmica não por uma via oficinal, antes pela via erudita propiciada pela formação académica de escultor naturalista desenvolvida entre Lisboa e Paris nas primeiras décadas do século XX.