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Guia da obra de Rafael Bordalo Pinheiro

O Zé Povinho, sempre o mesmo

Texto de José Augusto-França

Em 12 de Junho de 1875 nasce Zé Povinho (“Seu Zé Povinho” na legenda posta numa das pernas das calças), dando para a cera de Santo António, na véspera do dia do santo lisboeta, que em Lisboa é e será seu sítio de representação. O jornal em que aparece é A Lanterna Mágica, em 1 de Maio lançada e que irá até 31 de Julho, quinze ou vinte dias antes da súbita partida de Rafael Bordalo Pinheiro para uma longa estada brasileira, no Rio, em continuação contratada da sua profissão de desenhador humorista de três jornais de sucesso. A popularidade de Rafael Bordalo era grande já e não parará de crescer, à volta do Brasil, em mais outros jornais que era pão hebdomadário da vida alfacinha, em letras, artes, teatro e, mesmo que sobretudo, política. Isso até à sai morte, com cinquenta e quatro anos de idade, em Janeiro de 1904.
A Lanterna Mágica era uma “Revista ilustrada dos acontecimentos da semana” redigida por Gil Vaz, nome colectivo dos poetas Guilherme de Azevedo e Guerra Junqueiro, autores de uma peça que fará escândalo e será proibida quatro anos mais tarde, “Viagem à roda da Parvónia”- que era a pátria dos dois ou três, e de muita gente mais, naquela geração das conferências do Casino que Rafael Bordalo já comentara, na devida altura de 1871, n’ A Berlinda.
O Zé Povinho nasce no momento oportuno da história dessa pátria-parvónia, em fins de romantismo, no ano d’ O Crime do Padre Amaro do amigo Eça – que ninguém melhor do que Rafael Bordalo teria podido ilustrar mais do que fez, se tivesse sido caso disso… E já de um quarto de século de fontismo. A favor de Fontes responde Zé Povinho ao peditório, que é ele o Santo António Maria Fontes Pereira de Melo, em seu trono popular, e quem pede é o seu ministro da Fazenda. António de Serpa. Vigiando, de chicote à mão, está o barão dele, aliás do Rio Zêzere, chefe temido da Municipal. Ao colo do santo, de coroazinha na cabeça, o Menino Jesus-D. Luís I.

A “S. Pedro … Paio”
Litografia
Ass: “RBordallo Pinheiro”
A Lanterna Mágica, 26.06.1875, p. 52-53
MRBP.RES.18

Se o S. João seguinte (que era Andrade Corvo, ministro dos Negócios Estrangeiros), com D. Luís cordeirinho, não tem Zé Povinho na cena, ele volta para o terceiro santo, S. Pedro… Paio, que é o ministro Rodrigues Sampaio em “Negação” do seu passado de fundibulário anti-cabralista na direcção d’ O Espectro clandestino dos anos 40, que aparece no desenho como o galo do santo que responde o sábio “Não” à pergunta bíblica. Zé Povinho assiste, acocorado, comentando que é “sempre o mesmo”, ou mesmas as coisas da vida política; ou ele, através dos séculos.
Só voltará no N.º 14, já o semanário, pelo êxito, se tornara diário, e então cabe-lhe comentar o aumento das tarifas do caminho de ferro, ou logo depois, observando o feroz bispo de Viseu “reformista” deixar a vida política, “Alves o democrata” versus “D. António o papista”. Nos dois casos, o Zé está “sempre na mesma”, multiplicado em meia dúzia de imagens, olhando e espantando-se, boca alvar, rabo no chão… Ou dormindo, no meio de uma zaragata de caixeiros da Rua dos Fanqueiros por causa de descanso dominical. Que pode ele, Zé, fazer? Quando a oposição, que se dirá em breve “progressista”, perante o tal aumento das tarifas ferroviárias, lhe pergunta se ele vai continuar a servir o governo, a sua resposta de filosofia política é “Que hei de eu fazer?”… E como o saberia ele?

A Preparativos para a Parada de 24 de Julho
Litografia
Ass: “RBordallo Pinheiro”
Publicado n’ A Lanterna Mágica, em 22.07.1875
MRBP.GRA.164

As “cem riquíssimas peças de artilharia” em parada no 24 de Julho causam-lhe o pasmo do costume, sem perceber que melhor fora, com o seu custo, darem-lhe escolas… E é em garoto de idade de ir à escola que ele é figurado no N.º26, espojado no chão do Rossio, dedo metido na venta, do lado de fora de uma casa onde o rei e os seus ministros brincam com soldadinhos de chumbo. Ele é “Zé Povinho júnior”, só uma vez assim representado, personagem que a idade parece atravessar, mas desnecessariamente, como bem entenderemos, na crono-biografia impossível ao mito. Porém, o mais importante da obra de Rafael Bordalo, pelos anos seguintes fora, após o entracto brasileiro – no qual o Zé Povinho mal podia aparecer, ou como “Manuel Trinta Botões” de imigrante disputado “entre a cruz e a caldeirinha”.

“Entre a Cruz e a Caldeirinha – Zé Povinho sempre o mesmo!”
Litografia
Ass: “RBP”
Publicado n’ O Mosquito, em 08.04.1876
MRBP.GRA.1147

De volta, estará Zé, logo na primeira página de novo jornal lançado ao regresso à pátria, ou a Lisboa e ao Chiado, que é O António Maria, de 12 de Junho de 1879, governava então, no “rotativismo” dos dois grandes partidos, o “progressista” que derrotara o “regenerador” de António Maria Fontes. A sua vida vai ganhar agora o sentido histórico (e mítico) maior, e logo com o letreiro do seu nome às costas, ao alto da primeira página, e, no interior do número, sentado no chão, e “sempre o mesmo” como o conhecêramos, a ver passar a procissão política do dia, vigiada por milhentas figuras de Fontes. Em breve, ministro do novo governo, o já famoso Zé Luciano, o distrairá com luminárias para lhe palmar votos de eleições…
O António Maria irá durar até Janeiro de 1885, terminando então por indignação de Rafael Bordalo contra a falta de reacção da imprensa a uma medida censória. E durante esses mais de seis anos, com a colaboração literária de Guilherme de Azevedo e de Ramalho Ortigão, o jornal passará em revista o quotidiano do país e da cidade, actor de Rafael Bordalo, literário e de ópera, e desportivos, numa atenção crítica permanente que os versos de Pan-Tarântula comentarão também.

“Giro Eleitoral às 120”
Litografia
Ass: “RBordallo Pinheiro”
Publicado n’ O António Maria, em 25.09.1879
MRBP.GRA.1088

Todas as personagens dos dois partidos, e de mais algum que inutilmente aparecesse, são postas em cenas, com relevo para os governantes, e sempre para Fontes e Braancamp, os chefes alternativos; e o bom rei D. Luís, poder morigerador que fazia o que podia fazer na baça vida constitucional… Um Álbum de Glórias, com imagens destacadas a cores será publicado paralelamente, com retratos escritos por Ramalho também, e constitui uma oferta à cultura social do país posta perante os seus principais actores, reis, príncipes, e ministros, mais políticos e escritores, actores e instituições (como a própria Carta Constitucional e a Universidade de Coimbra – – coitados!) – e o Zé Povinho que Ramalho Ortigão descreve, “O Soberano!”, perto de cinquenta anos de idade, filho da Carta e do Parlamentarismo, que “dorme, reza e dá os vivas que forem precisos”. Mas não só…
Porque Ramalho continua dizendo que “um dia virá talvez em que ele mude de figura e mude também de nome para, em vez de se chamar Zé Povinho, se chamar simplesmente Povo”. Estamos em Setembro de 1882, a sete anos da invenção da personagem que entretanto vimos evoluir e continuaremos a fazê-lo, páginas a páginas. Prevendo as próximas, Ramalho Ortigão dirá ainda então: “Mas muitos impostos novos, novos empréstimos, novos tratados e novos discursos correrão na ampulheta constitucional do tempo antes que chegue esse dia tempestuoso”. As datas que conhecemos na história de Portugal falam-nos de 1891, a revolução portuense do 31 de Janeiro, de 1910, o 5 de Outubro, já Rafael Bordalo morrera e Ramalho mudara de esperança; e falar-nos-ão, pelo século XX dentro, de várias lutas, num 7 de Fevereiro de 1927, e na revolução do 25 de Abril, quase a comemorar o centenário de Zé Povinho – que pôde ser feito logo a seguir, como veremos. Podem perguntar-se os historiadores se o Zé Povinho esteve presente nesses eventos, e com que razão ou certeza, e desilusões também.
Andaram elas incertamente pelas páginas de Bordalo, n’ O António Maria de antes e depois do Álbum das Glórias, e pelos jornais que lhes seguiram, até Novembro de 1904, última vez que Rafael Bordalo o desenhou, com diminuída significação. Antes, porém, dera-lhe a escolher entre duas soluções políticas que pareciam por se ao país, em 1904, falando de “Messias”, um do lado do rei D. Carlos, e era o próximo futuro ditador João Franco (que felizmente Bordalo já não conheceu) e do outro, anti dinástico, o deputado “progressista” que se tornara republicano, Bernardino Machado. Entre um e outra, o Zé devia escolher, tirando-o do caixote recebido em Grande Velocidade; escolheu então o republicano, para depois, como se sabe, e de revolução em revolução. Mas ele estava envelhecido então e o Zé Povinho aparece no desenho de cabelos e barba branca, como se isso pudesse ser, no processo da personagem, e uma só vez (ou duas) aconteceu, num triste paralelo com o envelhecimento do seu criador, que dentro de meses faleceria.

“Os Messias”
Litografia colorida
Ass: “Raphael Bordallo Pinheiro”
Publicado n’ A Paródia, em 04.02.1904
MRBP.GRA.1038

Quase trinta anos mediaram entre a primeira imagem que vimos e esta (quase) última, ao longo de cinco publicações que, fora o intervalo brasileiro, não pararam de correr, uma após outra, sempre a mesma, afinal, mudando de nome, por razões de birra a primeira vez ou de malícia contra a censura duas outras, e de estratégia editorial a última, já no alvorecer do novo século. Duas vezes os jornais se interrogaram, O António Maria, depois d’ A Lanterna e também, entre as duas, Pontos nos ii que Bordalo desejava por, numa situação de dignidade profissional, em 1885, passando a pô-los como sempre mas sem o dizer, na cumplicidade com a renovada menção do António Maria Fontes, já então, em 1891, há muito falecido e histórico para todos, por impunidade, quando a revolução do 31 de Janeiro impôs brutal fim aos Pontos nos ii. A Paródia foi nova vida que, com alguma ilusão, o artista se dava, figura popularíssima, com novo colaborador activo, o republicano João Chagas, depois de mais o Fialho de Almeida e o Eugénio de Castro (que não aqueceu lugar), e observando que à falta dele, mais ninguém podia retomar-lhe o facho, sequer o filho Manuel Gustavo. E aos cinquenta anos, Rafael Bordalo cria-se ainda capaz de encenar a “comédia portuguesa”, na sua prática lisboeta – que mudara de aspecto mas não de estrutura. Em 17 de Janeiro de 1900, era “a dansa da Bica no cemitério dos Prazeres”, “ o corpo dado à penhora, a alma dada à pândega”: “a caricatura ao serviço da grande tristeza publica”. A política era (ou continuava a ser) “a grande porca”, a finança “o grande cão”, a economia “a galinha choca”, a retórica parlamentar “o grande papagaio”, o progresso nacional “o grande caranguejo”, a burocracia “a grande rata”, a instrução pública “a grande burra” e a reacção “a grande toupeira” jesuíta. Manuel Gustavo ajudou o pai nesta visão zoológica da vida nacional, tanto quanto pode, e no meio das trapalhadas da política dos dois partidos ssim-assim (pim-pim se diria mais tarde) e dos seus apaniguados, o Zé Povinho é o eterno espectador, ou “sempre o mesmo”.
Tinta anos de aventuras e desventuras deram assim vida ao Zé Povinho, em suas presenças na cena nacional. Exemplos a dar, são de duas ordens – activa e passiva, muito mais desta por aparente definição do “sempre o mesmo”, dorminhoco ou alvar, ignorante das causas e sofredor dos efeitos.

“Depois das Eleições”
Litografia
Ass: “Raphael Bordallo Pinheiro”
Publicado n’ O António Maria, em 09.09.1880
MRBP.GRA.228.1

A primeira imagem que determinou a presença simbólica do Zé foi aquela em que o vemos sentado e risonho, sob uma enorme albarda de burro que Mariano de Carvalho lhe receitara num artigo de jornal mais cínico do que era habitual nos costumes do reinado de D. Luís I. Encarrapitado no rebordo da albarda está o próprio rei que, a laia de bridão, tem nas mãos uma corda que prende um dente da boca do Zé, enquanto, atrás, o famigerado político o pica com um pau, dando lugar na albarda aos políticos governamentais e “progressistas” da altura. “Albarda, Real Senhor!” fora a receita que pegou – e é debaixo dela que o pobre e risonho Zé, contente, é visto. Depois, ele irá de palhaço, em máscara de Entrudo, entre o rei e o Mariano que, vestido de cigana, lhe lê tal sina – para, logo depois, ser sovado à pranchada pela Guarda Municipal, e saudando os vencedores que limpam os sabres, sob o comando de um general pequenino, o Macedo, Pif-Paf.

“Depois da Batalha”
Litografia colorida
Ass: “Raphael Bordallo Pinheiro”
Publicado n’ O António Maria, em 17.03.1881
MRBP.GRA.1082

Depois será a espiga de quinta-feira da Ascensão, que lhe carrega as costas. Mais vítima, de impostos, ei-lo amarrado a uma coluna, no meio de centuriões da governança. Tem a cana verde na mão – mas poderá ela torna-se num cacete? De qualquer modo, o Zé não é admitido ao lava-pés político da Semana-Santa, porque para ele não há sabão no orçamento.

“A Situação”
Litografia colorida
Ass: “Raphael Bordallo Pinheiro”
Publicado n’ O António Maria, em 07.04.1881
MRBP.GRA.1083

Nesse ano de 1881 já não é só uma mas três albardas que o fazem caminhar a quatro patas perante o trono que bom do rei partilha com John Bull.
Tal é a situação que o velho Sampaio de outrora por seu lado partilha com Fontes. Mais um ano, e é Fontes quem rege a representação, protegendo os interesses do Salamanca do sindicato ferroviário, com o Zé multiplicado na plateia, atrás, para pagar as entradas. Fora um arranjinho entre os políticos de Fontes e o famoso Burnay que o vestem à espanhola. Ah, pudesse ele, corria-os a pontapé! Mas o medo do “peixe espada” da Guarda não o deixa.
Tem ele, é certo, as eleições em que é soberano, e vê-se apaparicado no dia dos votos – e logo corrido a cacete no dia seguinte, pelos mesmos eleitos. O pobre Zé é de cera – – e derrete-se ao sol brilhante do eterno Fontes; ou é árvore carcomida que os vermes percorrem, todos eles retratados e conhecidos, na minudência dos traços. Ah, se o limparem da filoxera e outros parasitas!… Ou das hetairas dengosas que o rodeiam e convidam – todas elas conhecidas também e bem retratadas com as cabeças da politicagem São máscaras do carnaval político – e é Fontes que, ainda em 18867/ (vai morrer em breve), pondo no rosto uma máscara que representa o chefe oposto, o Zé Luciano, vem perguntar-lhe se o não conhece.

“Botânica Política”
Litografia colorida
Ass.: “Raphael Bordallo Pinheiro”
O António Maria, 04.01.1883, p. 8
MRBP.RES. 2.5

Ai não! Ele é “o mesmo do ano passado, com outra caraça”… Mas que há-de o Zé fazer, senão esperar as alternativas? E se lhe dão festa de casamento principesco, ele abra a boca em “ahs!” de espanto e agrado, sabendo (ou não querendo saber) que no dia seguinte gritará “huis!” de lamentação, antes os novos impostos… De qualquer modo a ele cabe carregar com a velha e triste “agricultura portuguesa” – “um tísico a amparar uma caquética”… Resta-lhe, outra vez, coçar-se das pulgas que, em 1898, o Zé Luciano manipula fazendo-as dançar, com cabecinhas conhecidas – neste talento ímpar de Rafael Bordalo conseguir mini–retratos em cabeça de alfinete, ou de pulgas amestradas, nas câmaras legislativas. Onde os espectáculos de borracheira se sucedem – e o Zé a pagá-los, chora ele, aureolado de mártir… Ou de coroa de espinhos enterrada na cabeça, na revoada dos impostos de 1893, depois de tantas amabilidades britânicas em encontros internacionais dados à pândega, e apartando-lhe sempre o John Bull o pescoço com a gravata oferecida para melhor compostura.
Pelo pescoço pendurado já o sabíamos desde 1881, enforcado pelo tratado de Lourenço Marques, ou 1883, manequim de guizos em descrição de Victor Hugo no Pátio dos Milagres, em que estão eles todos, praticando – Fontes ainda então olhando o seu sucessor Hintze que cuidadosamente procura roubar sem abanão o estafermo a isso votado. E vai conseguir, como outros antes dele e outros depois… Ah, a cara de gula do próximo chefe dos regeneradores, as suas mãozinhas hábeis, assegurando o equilíbrio do corpo e a estabilidade da vítima!…
Vítima, sim – mas… E é o próprio Híntze que vemos em 1884 ou 83, posto à margem, delicadamente, de um banquete público, ou mesmo a pontapé, numa das raras violências do Zé Povinho – excelente o desenho e pode achar-se que excelente a decisão. No primeiro caso, o ministro fora apenas marginalizado, colocado fora do desenho que representa todas as personagens da vida política nacional, desde o rei e o príncipe, aos bispos e aos ministros e mais generais, sentados a uma mesa de banquete de 1.º de Dezembro de 1984, sob a ramagem onde há pássaros bis naus (como o Burnay) defecando-lhes em cima. Serve à mesa o Zé, de libré da Casa Real, de sacristão ou de impedido, ou de cozinheiro também, levando uma suculenta travessa, sem reparar nos esfomeados que rodeiam o banquete, brancos (as escolas, as pescas – lê-se nas figuras), mas pretos também, o que não é costume de boa consciência. Hintze está sentado sozinho fora do enquadramento do desenho – donde, antes, o vimos corrido por um caso de falcatrua do seu poder de ministro da Fazenda, num concurso público de alfândegas.

“A Árvore da Liberdade”
Litografia colorida
Ass: “Raphael Bordallo Pinheiro”
Publicado n’ O António Maria, em 03.01.1884
MRBP.GRA..2598

Pobre Zé, que se via obrigado, em 1886, a despir e partilhar os panos da camisa, para pagar as festas do casamento de D. Carlos e para o senhorio. E já antes o víramos nu, não podendo despir-se mais, como o exigia ainda o ministro da Fazenda de 1881, até ser só pele, ou menos que isso, espinha de carapau, em Janeiro de 1885 ou Março do ano seguinte, dirigindo-se a dois governos sucessivos, do Fontes “regenerador” ou do Zé Luciano (“diálogo entre Zés”, é o título) “progressista” – o que tanto lhe faz, ao corpo condenado…
Condenado como Zé – Prometeu, amarrado ao seu rochedo e devorado pelo abutre britânico. Ou como o próprio Cristo presidindo à derradeira Ceia, na crise de 1881, ou na rotina de Abril de 82.

“O Dia d’ Hoje – A Ceia de Zé”
Litografia
Ass: “Raphael Bordallo Pinheiro copiou Paris”
O António Maria, 06.04.1882, p. 108-109
MRBP.RES. 2.4

Não passou sem pena a imitação do quadro de Leonardo porque a inspiração foi julgada sacrílega e teve processo – mesmo que Rafael Bordalo, em vista disso, se pusesse a ele no lugar do Zé Povinho ou do Cristo, rodeando-se então de juízes e polícias da perseguição que sofreu… Para o Zé Povinho, neste momento definitivo da personagem a que se compara, os companheiros de mesa, doze, como mandam as escrituras, vão do rei D. Luís ao Burnay, e passam, nos lugares apropriados, pelos protagonistas da política rotativa da altura. Todos eles são identificáveis, e Fontes é o Judas da companhia com o gesto que compete à sua encarnação. Defronte do Zé, uma bandeja diz “Impostos”… Zé Povinho vítima é, nesta composição, a representação limite da sua saga, e nada mais ele poderia dizer – ou o deixariam dizer, sem processo judicial…
A partir daí, e numa cronologia que pode sofrer inversões, consoante as conjunturas, ele só mais podia ser crucificado – e ressuscitado, então como deus vingador, o Povo que em tempestade Ramalho sugeria…
Zé Povinho pode assim ser um símbolo activo e ameaçador, deixando-se de queixas e preguiças ou medos. Isso acontece paralelamente ao outro discurso de vitimização, e é importante que assim seja, na ambiguidade fatal da personagem, em suas referências ideológicas e de brando carácter que aos portugueses então se disse convir. Como tal ele foi dado à luz, respondendo a um peditório institucional, dentro de um quadro de obediência aos poderes constituídos pela monarquia liberal e constitucional. Os servidores desse quadro, no decorrer pacato dos governos que só formalmente e por clientelas divergiam (como muito justamente um tal conde de Abranhos entendeu – e muito parceiros políticos com ele), mereciam críticas e desprezos, muito raramente aplausos – a não ser (não o esqueçamos, que é ponto de honra de Rafael Bordalo) à hora da morte, como foi o caso paradigmático de Fontes, em 1887, situado em sua alta qualidade histórica que definiu a segunda metade do século.

“O Último acto do Hamlet”
Litografia
Ass: “Raphael Bordallo Pinheiro”
Pontos nos ii, 20.01.1887, p. 24
MRBP.RES. 3.3

O Zé precisava ainda de legenda no N-º 10 d’ O António Maria para ser identificado pelo leitor, e é no cacete que empunha que o seu nome vem. “Eu, se lá vou com este cacete lava-os o diabo a todos”… – quer dizer aos políticos -bonecos de pau (e o rei também) que, na prateleira da barraca de feira, recebem as bolas que lhes atiram os do governo, ou seja o Sampaio e o Fontes que as fornece. É o que se chama “Pim Pam Pum”, do nome da barraca.

“A Política: O que é – O que pode ser”
Litografia
Ass: “Raphael Bordallo Pinheiro”
Publicado n’ O António Maria, em 11.03.1880
MRBP.GRA..2687

Não é um cacete mas uma picareta que o Zé empunha sete meses depois, tal como “pode ser”, a par da imagem do “que é”. Nesta, elevai a quatro patas sob a famosa albarda, direito ao rei em seu manto – já dito de ladrões; e eles lá se escondem e espreitam., os políticos de um e de outro partido… Os quais, e o rei também, seriam corridos pela cólera do Zé, que a República aplaude, ao fundo. E uma cartilha de aprender a ler ilustra, no chão. “Zé Povinho transforma-se em Povo, atirando com os aparelhos ao ar”. Pode ser, pode ser – mas não é… Embora, quatro anos mais tarde, um cacete lhe volte às mãos de S. Miguel Arcanjo que expulsa do Paraíso Mariano–Adão e Fontes–Eva, nuzinhos como no quadro de Rafael Sanzio assim parodiado. Outras violências pode haver, quando o Zé, a quatro patas, sim, mas sem albardar, morde o rabo do John Bull-dog em 1881; ou em 90, ele, boneco de dizer que sim aos governantes, parte o invólucro de louça e deita para fora um homem jovem, Zé Povinho sem preconceitos, de “voto livre” na mão – “armado e pronto à luta”. Ou danado contra a indústria estrangeira que invade o país, a corre a pontapé, no ano seguinte. Outro “magistral pontapé” ele dera já, em 1884, na panela do carneiro com batatas de todas as promessas eleitorais… E outra vez uma formosa República olha a cena. Outra violência sua é, vestido de marquês de Pombal no retrato célebre, fazer sair barra fora os jesuítas, a favor, então /(1884), do “Ensino livre”, na permanente campanha anti-clerical de Rafael Bordalo.

“A Expulsão dos Jesuítas”
Litografia
Ass: “Raphael Bordallo Pinheiro”
O António Maria, 11.05.1882, p. 148-149
MRBP.RES. 2.4

Republicano não será, ortodoxamente, o artista, cioso da sua liberdade de opinião, e capaz de por o Zé Povinho a saudar a rainha de Espanha por ter abolido a escravatura em Cuba. O que não o impede de saudar o patriotismo nacional contra a Espanha, em 1886 ou 93. O mesmo patriotismo o levara, em 1882, a clamar contra o roubo feito à pátria nas manigâncias do caminho-de-ferro ligando Lisboa à Espanha, assinadas por Hintze e Burnay, com os dois reis ibéricos a apertarem as mãos de júbilo. E, tal como protestara contra a invasão da indústria estrangeira, também saudará em 1891, uma exposição industrial “nossa”, no Palácio de Cristal do Porto.
Republicano não será o Zé Povinho – porém, que fazer, posto perante os “partidos da rotação”, num pútrido caixote do lixo donde emergem os seus representantes, entre ratazanas mortas e cabeças de pescada? É já para o fim do discurso bordaliano, em 1901, em página d’ A Paródia. “Que pode ele fazer”, vai tendo resposta e desde cedo, que já em Novembro de 1881 o vemos a dar voltas à prensa chamada “República”, que aperta toda a classe política, à escala do “eleitómetro” cronológico que a vai ameaçando. Tratava-se então do resultado das últimas eleições “republicanas”, escreve Bordalo, falando do “movimento progressivo com que se ia apertando sobre os factos a grande prensa da opinião”. E, sobretudo, sobre o seu chapéu rústico, o Zé, apertando a prensa, exibe um barrete frígio.

“O Movimento Eleitoral”
Litografia
Ass: “Raphael Bordallo Pinheiro”
Publicado n’ O António Maria, em 10.11.1881
MRBP.GRA.2791

Muitos barretes desses ele vê coroar, em Maio de 1882, toda uma teoria de estátuas da República que os próprios governantes, a começar pelo rei D. Luís, sem saber, esculpem. E, entre eles, Gomes Leal e Angelina Vidal, republicanos esses, confessos. Rafael Bordalo mantém-se à parte, modelando o famigerado Juiz Veiga da Polícia, e declarando que, a República ele “não a faz nem desfaz”. O Zé passa observando as estátuas da “Grande obra”, sem mostrar opinião para além das dúvidas que tem.
Delas ele dá conta, logo quatro meses depois, ouvindo o que a República lhe vem dizer ao ouvido. O rei está em segundo plano, no seu trono, os chefes políticos (e Burnay) tripudiam em redor, e a bela dama, vinda dos céus, diz ao ouvido do Zé indeciso: “Tu o que não tens é amor da pátria”. “Han?” responde o pobre. Porque ele tem medo de se operar da chaga que lhe lavra o peito, esta Constituição coroada. “Doente pulsilânime” espera sempre por amanhã para curar a moléstia, com o perigo de gangrenar a ferida… É isso que lhe dizem os arautos da República, Magalhães Lima, Arriaga, sob o busto impoluto de Henriques Nogueira no seu clube, em 1883. Decidir-se-á ele? Em Julho de 84, a comparação é clara: os do pacto constitucional da Granja cavalgam-lhe o lombo enquanto os três deputados republicanos eleitos o levam aos ombros, em palanque, sob uma bandeira que diz “14 de Julho 1789”, como data de referência universal. E imediatamente antes vimos o Zé Povinho preferir o “barretinho vermelho” dos candidatos republicanos em sua barraca de ideias aos apelos dos dois partidos da monarquia que só lhe oferecem o habitual carneiro com batatas. A concorrência repete-se em Dezembro de 85, entre a longa lista de candidatos republicanos que Elias Garcia encabeça, na mão potente da bela República armada, um progresso de fábrica ao fundo, e Fontes que lhe oferece sempre o guisado de carneiro e actos de roubalheira no pinhal da Azambuja, com uma arca de libras a voarem, como única perspectiva de futuro. “Agora vê por onde te decides, ó pateta das liminárias…” diz a legenda – e o Zé abre a boca e um olho só, deitado para o bom lado…
Cuidado, porém aconselha-o o bom rei D. Luís jogando com ele ao “Assalto”. “se jogas à bruta perdes a partida” – é a convicção régia e morigeradora, que é também a das forças anti-dinásticas não preparadas para o assalto, como Zé Povinho entende, ou julga que entende. E a prova vem, trágica, depois do ultimatum britânico, coma revolução do 31 de Janeiro. A página dos Pontos nos ii de 7de Fevereiro de 1891, último número da revista então proibida, tem uma irónica ambiguidade. “Srs. Governados e Governantes! Juizinho é que se quer… “E ele, mascarado de “salda” naquela quadra de Carnaval, vai ter com outras máscaras, para o baile das instituições…

“A Revolta do Porto”
Litografia
Ass: “Raphael Bordallo Pinheiro”
Pontos nos ii, 05.02.1891, p. 41
MRBP.RES. 3.6

Foi isso “a revolta do Porto”, e mais não poderia Bordalo dizer, para além da reportagem dos estragos da revolução. Zé espera a sua hora, ou o seu tempo. Menos de três meses mais tarde, à morte de Elias Garcia, Zé Povinho representa no enterro a gratidão de “um povo inteiro”. Nenhum humor na sua expressão, avançando gravemente no cemitério.
A meio de 1903, Rafael Bordalo fará o balanço do seu herói: é “o Zé Povinho na História”, e vai de 1807 (por engano lê-se 1801) à actualidade. Na primeira data, é a fuga de D. João VI (tal como era então ainda interpretada a retirada da corte para o Brasil, à invasão de Junot) e o Zé dorme deitado no chão do Terreiro Paço. Em 1820, ele ergue-se, de pistola na mão, à revolução liberal, para se deitar de novo a dormir doze anos mais tarde, no terror miguelista em fundo de forcas. Levanta-se de novo em Setembro de 36, não na vitória da guerra civil, mas na revolução vintista que se lhe seguiu. Depois, ei-lo dormindo, quando as tropas espanholas entram em Portugal para dominar a revolução da Maria da Fonte: é a Paz de Gramido, no ano marcado de 1851 – que é também data da Regeneração. Que, tal como a vitória de D. Pedro IV não conta para ele. O que, sim, vai contar, é, quarenta anos mais tarde, o ultimatum, na grande indignação nacional.

“Zé Povinho na História”
Litografia colorida
Ass: “Raphael Bordallo Pinheiro”
Publicado n’ A Paródia – Comédia Portugueza, em 23.07.1903
MRBP.GRA.1032

Passaram mais treze anos e, sob a árvore da Liberdade, sem folhas, ele dorme uma soneca real, com o Veiga juiz fazendo-lhe em cima. São os altos e baixos de uma história.”Deixa andar corra o marfim” diz ele, por terra, entrapado de impostos, sob uma teoria de figurões do governo, dançando de contentes entre as asneiras que fazem ou as benesses e postas? que conseguem – e estão, bem entendido, identificados, em boas caricaturas. O Zé rola o seu cigarrinho – – e envelheceu, de cabelos brancos como já sabemos que será visto, em 1903. Três anos antes é agora, por outra raríssima vez. Por toda a Europa, da Espanha à Rússia, explodem vulcões sociais que reis e presidentes procuram apagar, de mangueiras em punho. Em Portugal, porque a explosão é modesta – é o Zé Povinho que nós vemos apagar o fogo, e fá-lo urinando discretamente, de costas, em jacto bastante…

“Sempre à espera”
Litografia colorida
Ass: “Raphael Bordallo Pinheiro”
Publicado n’ A Paródia, em 12.02.1902
MRBP.GRA.1046

Mas o “sempre à espera” volta à cena, em Fevereiro de 1902; não igual, porém. Não que tivesse envelhecido com o seu autor, como vimos acontecer-lhe já, mas porque reflecte, inquieto, dando pelo que sucede: “que o governo faça cera, que o crédito se desfaça, que o país se oponha em praça…”
Em Janeiro de 1881, sob uma teoria de reis, desde D. Afonso Henriques até D. Luís, de dinastia em dinastia, e com o pequeno D. Carlos pendurado e quase a cair-lhe da cabeça, o Zé Povinho está deitado por terra: é o “Rol dos Santos Reis”, e ele dorme, a cabeça sobre a albarda. “Levantar-se-há ?”
É a pergunta já então feita. Sim, levantou-se uma vez ou outra, parecia ser Povo então – mas era de seu jeito olhar e esperar, nesse ano quase último da vida do seu criador.

A albarda do Mariano que lhe coube, posta embora de parte, é seu sinal de vida. Mas, sem que a queira sacudir, outro sinal ele tem, num gesto que, em cerâmica, lhe foi dado, e é o manguito popular do “ora toma!” O busto do Zé, olhando firme o espectador, seja ele qual for (ou nós próprios, e cada um de nós) diz-lhe (ou diz-nos) o que tem a dizer: ao fiado que lhe pedem, à confiança sobre a qual as instituições têm que repousar, ele responde que não. Toma lá! O fiado que há séculos lhe é solicitado, e no regime constitucional que sobre si próprio se constituiu, através das eleições periódicas que são atestado frágil de confiança. É tudo quanto ele pode responder, dobrando os braços e virando as costas, de regime em regime, de período em período, desde que nasceu – e cem anos mais tarde, quando pareceu possível comemorar-lhe o centenário – num livro que levou sumiço no editor…
Ao princípio era a albarda, ao fim o manguito, escreveu-se então, e é entre os dois sinais que há que entender a significação deste herói nacional, único da sua espécie, por razões do nosso estar histórico, económico e cultural; e naturalmente político, por fatalidade de governo ou governos. Daí que a República não tenha podido alterar as suas estruturas multisseculares; nem a Primeira, nem a Segunda, contando a seu favor a proibição sofrida entre as duas. Zé Povinho – quem? o quê ? Sujeito ou objecto da vida nacional que no tempo da vida de Rafael Bordalo não evoluiu mesmo que tivesse progredido em população mais do que em gente, “sempre a mesma” se diria, com do Zé – caranguejo o progresso, burra a instrução… Entre o que Eça escreveu e publicou ou deixou inédito e o Fialho, a cidade cresceu do Passeio Público à Avenida catita do Fontes, os figurinos mudaram nas mulheres, ou nas senhoras, ou nas senhoras, e nos homens, ou nos cavalheiros, naturalmente, por definição burguesa que lhes é necessário; as estruturas é que não, apesar do Fontes e o seu fontismo que mais não podia, por herança e posses mal conseguidas. Se um paralelo nos fosse permitido traçam, seria, afinal, entre o Fontes e o Zé – vítimas, ambas, da pátria em que nasceram, engenheiro um rural o outro.
E rural nas piores condições, da nesga suburbana que habita, entre a cidade dos outros e o campo que já o não é, estas hortas da Porcalhota que alimentam a urbe e lhe dão lazeres dominicais, de fado e vinho tinto… Hoje, o Zé Povinho habitaria (ou habita ainda – que os sociólogos o constatem, com números, “mutatis mutandis”, de taberna e droga, desemprego e televisão parabólica…) nos bairros de lata, indo ao trabalho fabril que no seu tempo não havia e hoje há o que há. “O Povo já não era o Zé Povinho”, disse o João Chagas, falando do início do século XX, tempo da “paródia” – mas ele, republicano (e parisiense) não podia dizer outra coisa, sem se desdizer. Os tempos nunca tinham chegado a ser tempestuosos, como pensara Ramalho vinte anos atrás – e o romantismo continuava a exprimir-se nas branduras de costumes quanto muito apinocados.
Se, durante o hiato de tempo recolhido ou inexistente do Estado Novo, Fontes reincarnado em Salazar com reacções cabralinas, a pouco e pouco o Zé Povinho desapareceu dos jornais, e dos palcos do Parque Mayer, não era porque tivesse deixado de existir, mas porque não podia mostrar a sua presença incómoda ou subversiva – pelo lado que mais dói na crítica das instituições, que é o do sempre irrespeitoso, anárquico riso.
Ele ficara, porém, à espera – de um milagre, totobola que o enriquecesse, como a tantos, como saída única da miséria endémica, ou de um Godot que havia de vir ou não vir, na noite descente, dos tempos da história possível.

“Valente John Bull!”
Litografia
s/ass.; s/d
Publicado nos Pontos nos ii, de 03.08.1889
MRBP.RES.3.4

O Joseph Prud’ home da cultura burguesa francesa morrera com a fase histórica, luísfilipina, que lhe deu nascimento, um quarto de século antes, e John Bull, representação da cultura imperial inglesa morreu também, com a rainha Vitoria, perdendo razão de ser e de vanglória com a perda futura das terras conquistadas pelo mundo fora. E o Uncle Sam, símbolo dos Estados Unidos em outro e potente imperialismo, já não poderia ser evocado para além do esforço de guerra de 1917, melhor fazendo em esconder-se pelo século XX fora, protector mais do que suspeito de Américas e Europas ou Médios Orientes em crise de petróleo Os três figurões da simbologia ocidental tiveram os períodos de vida que a filosofia política pode assegurar-lhes, nas lutas dos interesses geo-políticos mais subtilmente definidos. Nas suas encruzilhadas, que tempo podia caber ao Zé português? Desfeito pelo Estado Novo, o seu patriotismo coloniata, monárquico e ainda logicamente republicano, não podia ser evocado para a defesa das Africas em guerra, por um mínimo de prudência, mesmo que decência não pudesse haver no caso. E, em 1974, chamado pelo lápis admirável de João Abel Manta, ele só podia ou devia defender um entendimento de brancos e pretos – pretos que, afinal, todos tínhamos sido no país, durante meio século, e como tal tratados… Ou aconselhar, em confessionário, que tivessem juízo os novos chefes de partidos ressuscitados, para não o (quê?) lixarem, por mais outro meio século de silêncio, polícias e miséria…
Se nas incertezas destes meses de todos os perigos, de entre americanos e soviéticos, outra figura pode ser genialmente criada, por Sam, o Guarda Ricardo, original porta-voz da outro bom senso explicativo, entre absurdos em roda livre, com grande sucesso de jornais e público: este só podia ser-lhe intelectual, no domínio dos sofismas que não era o do Zé Povinho directo, de pão – pão – queijo – queijo, quando os tem. E a isso resistiu a criação de Rafael Bordalo – “sempre na mesma,” dormindo ou esperando não sabia, soube, sabe ou saberá o quê… E a sua força de perenidade está nisso mesmo por identidade, isto é igualdade a si próprio, em hortas ou bairros de lata, vivas ao Benfica ou protestos de vida cada-vez-mais-cara – fantasma pairante sobre as cabeças que vamos tendo.
O leitor das dez mil páginas desenhadas por Rafael Bordalo, durante um terço de século que foi historicamente definitivo para a definição modernizante da pátria, encontra em cada canto um Zé Povinho que representa, encena ou anima um caso, um problema, anedóctica e circunstancialmente. E sendo, como deve ser, de hoje o leitor, esse encontro se actualiza como se agora mesmo acontecesse. Aos milhares de comentários e comentaristas da actualidade, o Zé pode sempre melhor fazer – fazendo o que já fez. Os protagonistas da vida política do princípio do século XXI, todos eles, velhos e novos, Fulano, Cicrano ou Beltrano, já foram retratados por Rafael Bordalo e enfrentados por Zé Povinho. Tal e qual! Por isso também se pôde chamar ao artista mais importante da segunda metade de Oitocentos, entre o mano Columbano e o Malhoa, tríada do conhecimento nacional, por dentro e por fora, na cidade e no campo, “o Português Tal e Qual”.
… E ás nostalgias que nos venham, e que, seu exacto contemporâneo, “O Desterrado” de Soares dos Reis nos lembre, por explicações e desculpas, o Zé Povinho poderá sempre opor o seu gesto firme e definitivo. Queres saudade, queres? Ora toma!…

Lisboa, Janeiro 2004

Caixa “Ora Toma”
Faiança
Rafael Bordalo Pinheiro
1904
MRBP.CER.375