Espinho encravado
Texto de João Paulo Cotrim
É um risco. Em obra multifacetada, cujo brilho se multiplica a cada leitura, mas que conserva recantos de sombra, escolher uma imagem forte, detalhe no fresco enorme, minuto da grande encenação, é abrir a porta para deixar entrar o labirinto.
Começar pelos começos, que são inúmeros, seria expediente bom para sublinhar em cronologia: o primeiro álbum de caricaturas, o nascimento da metáfora do país, a introdução em definitivo da narrativa gráfica, a aplicação da cor na imprensa, a criação de jornais, o uso desmedido da autobiografia, o impacto social e por aí fora em todas as direcções. Maçador de tão espartilhado, procedimento que raia a autópsia.
Entrar pelo magnífico «Vinte anos depois» faz com que logo encontremos com a saída. Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) auto-avalia-se em duas poses unidas pela abóbada do tempo. Entre o dandy de chapéu de coco que responde com altivez ao pedido humilde do curvado ancião de cartola vai o salto de um gato, dos telhados para o quieto aconchego, de O António Maria para A Paródia, folhas que caem dos bolsos em falso négligé. O artista pede lume a si mesmo, em fim de uma vida entregue às chamas. Sinal de arte por inteiro, não se separa em Bordalo a vida da obra, o que havia de nos levar longe, mas a carga simbólica é demasiado tentadora, perfeita de tão acabada.
O mesmo se aplica a outra possível abertura, esta arrancada às páginas do Álbum das Glórias: a figura de corpo inteiro do Zé Povinho, com albarda de cerimónia por perto, trajado a cores de passividade e esperança, com Ramalho Ortigão-João Ribaixo a biografiar em texto como no fado a viola acompanha a voz. É a figura mais popular, mais perene, mais discutida. Envolvida em mil peripécias, vítima e anti-herói, país e indivíduo podia fazer as vezes de cicerone na visita à obra impressa de um desenhador que as finanças taxaram como retratista. O seu cansaço não permite que nos acompanhe na viagem vertiginosa, mas não o excluímos da escolha, que queríamos mais imperfeita e narrativa.
Suba, então, o pano para exibição privada. O mecanismo está sempre em cena, basta que se desdobrem oito páginas de Os Pontos nos ii, de 18 de Junho de 1885. Sob o título «Como ela cresce…» surge a abrir, em página enquadrada por filete, um Zé Povinho dando passo de aflição, braços pendentes em dinâmica que acentua o olhar esbugalhado, a língua de fora. Cravado na garganta leva um Fontes Pereira de Melo coroado, que, por ser na ímpar, reserva-nos a surpresa de ver a coroa, sinal de poder e ambição, crescer rasgando as três duplas páginas seguintes e mais uma final. Começa por se sobrepor ao texto que faz a chrónica da semana. Maria da Paciência, mascote da publicação, vigia por sobre uma das duas colunas, enquanto minúsculas figuras aproveitam as hastes para deambular ou subir. Num ângulo, uma teia apanhou uma mosca. A coroa rasga depois o quadro típico de Santo António, que invoca aquele em que se viu, por primeira vez , o Zé Povinho em espantos face ao santo António… Maria, tendo ao colo o menino D. Luís, ambos protegidos pelo respectivo chapéu das gotas de chuva, autênticas “navalhas de ponta”. Nos degraus do trono-altar estão os peitilhos, reluzentes de goma, marca do governador civil, Peito de Carvalho. Por perto dançam em bailes e arraiais apesar do mau tempo umas quantas cartolas, talvez mesmo Rafael e Eça, ao passo que outras aproveitam os vincos. O Marquês de Valada, por exemplo, “melena fluctuante” e “dedos recurvos em crispações serpentinas”, tenta subir em esforço. Na haste de baixo está uma viola pendurada, de um lado, e do outro, um dente. Em rodapé, os versos de Pan-Tarântula, ou seja, Alfredo de Morais Pinto, colaborador literário do momento, dão o tom à cena. E continua por mais três páginas, com o texto a regressar corrido, uma vez mais semeado de figuras, algumas de óculos escuros devido ao brilho do peitilho, que surge dependurado enquanto “baluarte das instituições”. A metade inferior abre espaço para caricaturas que iluminam a semana onde se misturou teatro, festas, jardim zoológico e política. As hastes vão estreitando, servindo ainda de poleiro a um papagaio, fugido de uma das peças que é uma “grosseira contrafacção do que há tantos anos se observa no parlamento” , ou aguentando os ninhos de outras aves, que não se coíbem de defecar. Isto perto do “(fim da coroa)”, quando carregadores ilustres, um deles é o comandante da polícia municipal, levam o altar-trono. Como para essoutro “republicano façanhudo”, que a rota da boémia fez passar pela rua do Príncipe, ao pé do Paço do Duque ao fim de uma noite no teatro do Príncipe Real, também o artista ele mesmo mergulha em águas turvas por ter ido às Caldas… da Rainha.
Apesar de, por esta altura, a sua atenção ser disputada pelo barro e respectiva capital, estamos em pleno folhetim bordaliano, disperso mas unitário, básico mas complexo, servido pelo estilo feito de contorno e sombra, maduro na composição, veloz no traço. As personagens principais, o emblema Zé e o histórico Fontes, surgem em retrato expressivo, acompanhadas por figurantes de tamanho reduzido, também eles rostos reconhecíveis da política do momento. Cada um, se a sua importância o justificar, possui uma marca que se torna identidade, no caso, a coroa que pertence ao corpo de Fontes ou o mais óbvio peitilho de Peito de Carvalho. É que muitas vezes a ideia é fácil e resulta do diz-que-disse das tertúlias, criando empatias e despertando reacções. A caricatura principal lança uma história contada por texto e imagens, que vence os limites físicos da página, introduzindo o tempo no gesto de folhear, sugerindo movimento, enquanto estabelece relações orgânicas com a palavra, com outros desenhos e com o conjunto. Sem deixar de se implicar com auto-ironia, o artista parte de um momento particular na vida da cidade para suscitar temas mais abrangentes. Através da agenda mundana, dos ritmos quotidianos e de cada espectáculo, alcança as questões de política, do regime, enfim, do poder.
O caçador de tipos
Como estranhar que tenham sido os tipos a despertar a vocação? Não ocupam eles o lugar central de duas paixões do jovem Bordalo, o teatro e a boémia? Uma vez saboreados os palcos e as noites, ainda que não deixe de os viver, parece chegado o tempo de assentar na felicidade do casamento. O talento empurra-o para uma carreira de pintor, é-lhe notada dedicação e afinco à disciplina do esboço de natureza. A atenção ao que o rodeia e ao gosto do tempo acaba por resultar no quadro As Bodas na Aldeia e em várias aguarelas de tipos e costumes, que vinham sendo expostas, e continuarão por alguns anos mais, com recepção crítica .
Só que o jornal da juventude militante e interessada, Revolução de Setembro, publica, a 31 de Agosto de 1869, quatro sonetos anónimos dedicados a outros tantos literatos, autores de peças de teatro, como Luís de Campos, «o tipo terror dos bons maridos/e flagelo de todos os ciumentos»; ou escritores e polemistas, como Ramalho Ortigão, «um tipo assim é sempre herói», uma vez que «sabe cousas que aos sábios atrapalha/e aprendeu em Paris o quer que foi – que faz d’um folhetim uma navalha!»; ou cronistas como Manuel Roussado, «eis um tipo de graça e de cozinha,/com ditos de sabor»; ou o poeta piegas, Eduardo Vidal, «tipo de vate-flor! chorando apenas/suspiros que lhe vêm d’uma desgraça». Bordalo não resiste a ilustrá-los e a mostrá-los no umbigo do Mundo, nos cafés e redacções do Chiado. O sucesso foi tal que obrigou o autor, Clemente dos Santos, futuro Micromegas das folhas d’ A Berlinda, a revelar-se. Do encontro terá nascido o projecto de um álbum que pusesse em evidência «a parte vulnerável ou grotesca de cada cidadão caricaturado».
O Calcanhar de Aquiles, lançado logo após uma primeira folha volante, marca o ano de 1870, mas não o esgota.
Na capa, um pé feito de figuras humanas e calçado por uma sandália, inicia um passo. Apontando ao calcanhar, pronto a desferir a frechada, está o jovem Rafael de arco e pena de desenhador. Há gente que fica para assistir e mais que corre. O miolo é uma série bem comportada e devidamente autorizada de portraits-charge de rostos das letras e das artes em situação levemente satírica: além dos quatro tipos referidos, lá aparece, por exemplo, Herculano trocando a Academia pelo exílio do azeite, fazendo-lhe negaças. Assim se apresentava à sociedade o artista, ficando esboçada a linguagem de eleição. Faltava programa, mas parecia anunciado, meses depois com o do primeiro jornal a ser vendido nos teatros e experiência inicial de publicação periódica.
«O Binóculo apresenta, não comenta. Analisa, não sintetiza. Mostra os tipos. E de tipos é o nosso século. Arquétipos ou protótipos, pouco importa. O tipo tem hoje a máxima importância; o nosso século só admira tipos. (…) Binóculo é imparcial porque se dirige a todos. E com a mesma força. E com a mesma intenção. É ela vulgarizar, corrigir sem ofensa, castigar sem maldade.» Este modo de fazer será prática constante. O gesto de Bordalo é o da bonomia, apesar dos assomos de agressividade, apesar dos combates e das polémicas.
Fontes, “Nosso Senhor”, com o rei na barriga , o alvo de entre os tipos, sempiterno representante do poder, afinal o inimigo número um será elogiado na hora da morte, como companheiro entre os grandes . A carta de intenções do Binóculo pretendia ver ao longe, mas não anunciava ainda horizonte.
Este periódico, dedicado ao mundo do espectáculo, havia interrompido a sequência iniciada, ainda no ano seminal de 1870, com as três primeiras páginas de «um álbum humorístico, ao correr do lápis»: A Berlinda. Aproveitando os ventos que no coração da Europa revolucionavam a velha tradição da narrativa em imagens num novo modo de contar, ao mesmo tempo que a caricatura se vinha tornando na voz e visão do jornalismo político, Rafael Bordalo funda, entre nós, o que cem anos depois, há-de vir a chamar-se banda desenhada . As seis folhas iniciais, vendidas avulso com relativo sucesso , tratavam de comentar politicamente a actualidade, logo o golpe de 19 de Julho, a situação na Europa, em mapa que é pioneiro no uso da cor, depois nas seguintes voltando à política doméstica, com passagem pelo Carnaval (doravante indispensável no léxico bordaliano), até que surge a sétima, a da reportagem-comentário à proibição das célebres Conferências do Casino. «Senhores» começa por dizer o próprio em auto-retrato, «esta é a purulenta e burguesa fisionomia do país»: a católica e monárquica situação de um trono-altar caído, as finanças que roubam fingindo que pedem ao povo miserando, uma nobreza cujo cavalo é uma sombra, um clero barrigudo e alimentício, uma moral dissoluta e adúltera, ensino que é mancha riscada, um governo em festa, enfim, «tudo está lazaro asino corruptíssimo», ou seja, podre e malcheiroso. A isto contrapõem aqueles intelectuais, Antero, Eça, Batalha Reis, entre outros, uma visão de vistas largas. Só que a ordem, tremeu até conceber uma rolha: a portaria que fechou o casino, abafou e amordaçou os congressistas. No fim, a ordem burguesa e católica celebra. Por baixo, segue escrito um grito de «Viva a liberdade!!!».
O artista que se junta aquele grupo traz consigo vocação, servida pelos meios da caricatura, algum público e assume agora como seu um programa, tocado pelo perfume utópico da Comuna: civilizar a nação, fazer-lhe ver os calcanhares de Aquiles. De monóculo em riste.
O jardim selvagem
Tomado pela febre do dizer e do fazer ver, os anos seguintes são pouco menos que alucinantes. O organismo que se alimenta de actualidade e quotidiano, de espectáculo e política vai crescer como hera, torna-se frondosa árvore para rebentar em jardim, um parque que esconde e revela os detalhes de um teatro íntimo, o do jardineiro-caçador. Colabora em almanaques e jornais, alguns espanhóis e ingleses , espalha ilustrações por um sem número de livros, o que não mais deixará de fazer, por amizade ou razões de orçamento, com qualidade irregular, mostrando rasgo apenas numa ou noutra capa, ainda em estrita obediência ao gosto da época.
Rafael Bordalo não se encontra apenas na alameda central dos seus projectos principais. Ruas secundárias e praças afastadas hão-de surgir sem outra disciplina que o sabor de ocasião, em campanhas de solidariedade ou de celebração mais ou menos cultural, propondo reclames publicitários para sustento das suas folhas, desenhando rostos em menus solenes, que época de banquetes se vivia, ou oferecendo imagens às notas musicais das pautas folheadas pelas burguesas nos saraus familiares, e, inevitavelmente, desenhando figurinos para peças. Mais tarde, por via da opinião política surgirão como cogumelos números únicos de pequenos jornais de propaganda e, uma vez mais, de homenagem. A isto se acrescenta a dispersa autografia em álbuns, prática comum nas casas e amizades de então, bem como a correspondência.
A epistolografia é arrepio significativo que percorre vida e obra, ou melhor, faz-se movediço terreno de correspondência entre ambas. Além das intimidades, afectos e brincadeiras que trocam são também exemplo maior da integração do texto e imagem em desejo absoluto de contar uma história com artista dentro. Logo n’ A Lanterna Mágica , segunda tentativa de jornal, um página de «expediente» explica-nos a razão de vermos «a detestável caligrafia» do artista. Uma máquina tipográfica uniu-se aos caixeiros em motim que a levou à prisão, de onde foi tirada sob fiança para de novo fugir a caminho de procissão. Mais tarde, já no Brasil, em O Mosquito , deu ao Sr. Bordalo Pinheiro um «Tangoromangoro mau» que o impediu de cumprir os deveres. A dupla central, que disputava à capa as vezes de destaque nas revistas, é preenchida com as desculpas dos editores encimando a missiva onde se explica em frases, interrompidas por desenhos, que a doença o obrigou a trocar os «assuntos palpitantes» por uma convalescença de rede. Caso sério, único no seu género, foi a sucessão de cartas abertas arremessadas entre ele e o caricaturista brasileiro, Ângelo Agostini , que começa em Psit! e se prolonga para O Besouro, originando suplemento, O Besouro de Chicote, e post-scriptum em que um Agostini-engraxador é expulso da página a pontapé, em gesto gráfico que voltará a usar empurrando personagens para o abismo da dobra. O que começara como saudação do colega da Revista Illustrada ao surgimento do Psit!! embora referindo com ironia o facto de Bordalo se ter feito importador de enchidos portugueses, descamba em discussão acerca da liberdade criativa de cada um com insultos em crescendo. Não voltará a experimentar indignação tão violenta, que produzirá páginas intensas de criatividade além de indicações acerca do papel social do caricaturista. Vinte anos depois, está esquecida . Alguns interlocutores serão bafejados pela sorte mais do que uma vez. Sua Majestade, El Rei, é destinatário comum, seja no final de No Lazareto de Lisboa solicitando ironicamente a comenda destinada aos emigrantes em Terras de Santa Cruz, ou em O António Maria ou agradecendo, com não menor ironia, a cumprimento de súplica por novo penteado.
Outro tipo de “carta” surgirá, anos mais tarde, na Paródia-Comédia Portuguesa , em resultado de uma greve de tipógrafos: um jornal manuscrito, como os do colégio, «cheios de ideias, cheios de factos, de anedotas, de borrões de tinta». Uma vez mais, a integração dos vários elementos com atenção ao conjunto desenha uma narrativa, que nos é dirigida pessoalmente. Aliás, as publicações periódicas, com os editoriais de abertura e fecho, as explicações úteis de assinatura, os dados acerca das reacções, mas também os comentários puros, as caricaturas onde o autor nos pisca o olho, as bandas desenhadas onde fala das seus percalços ou espantos, mais os álbuns soltos, enfim, será demais ler o conjunto de obra que nos é constantemente remetida como longa e fragmentada carta?
Palco, o corpus do actor
O terreno fértil para tal folhetim não podia deixar de ser as páginas dos periódicos, como há décadas acontecia na Europa e aqui se impunha como prolongamento em papel das tertúlias que conversavam noite dentro os «assumptos do dia» no sacrossanto triângulo alfacinha entre S. Bento, S. Martinho e S. Carlos. Até ao auge d’O António Maria, o jardineiro tratará ainda de semear algumas plantas, carnívoras e de estufa.
Álbuns de banda desenhada, assim entendida, serão três. Apontamentos de Rafael Bordalo Pinheiro sobre A Picaresca Viagem do Imperador de Rasilb pela Europa, de 1872, que trata no seu traço mais espontâneo o tema em voga da viagem, aqui aplicado ao lugares da cultura da Europa e a um ilustre político amante das artes, D. Pedro, Imperador do Brasil. De chinelos e malão, por catorze pranchas, com paragem em Vale de Andorra Júnior, i.e., Portugal, para festas, visitas às academias em Lisboa e Porto, e até um encontro com Alexandre Herculano. Texto e imagem são par que executa perante os nossos olhos um bailado vertiginoso de criatividade ao serviço do contar, com as palavras vibrante no esforço para seguirem desenhos soltos e cheios de minúcia que mudam de estilo, desrespeitam vinhetas e tamanhos, inventam sinais icónicos, condensam ou espraiam o tempo da narrativa ao sabor de um saber moderníssimo. Conheceu três edições este primeiro álbum de bd do Vale de Andorra Júnior.
M.J. ou a História Tétrica Duma Empresa Lírica, um ano depois, dá-nos acesso ao uma temporada no S. Carlos, que parecia possuir tanto de teatro lírico como hoje o futebol. Bordalo volta a auto-figurar-se no papel de comentador-vigilante.
Como vimos, a fórmula da narrativa figurada será usada vezes sem conta, em completo e complexo panorama dos ritmos de relação das imagens entre elas, do texto com elas, e da dinâmica do conjunto. A ida para o Brasil é logo contada em O Mosquito e o regresso dá origem a um pequeno livro que antecipa uma das mais contemporâneas tendências desta linguagem, a autobiografia. No Lazareto de Lisboa é o relato em quaro partes da viagem e da quarentena antes da entrada na capital do Império. Depois das saudosas «Recordações», com o Pão de Açucar a verter uma lágrima na despedida, segue-se breve descrição da viagem que termina no assunto: o impedimento de oscular a Pátria, uma Torre-de-Belém-camponesa-de-lenço que lhe lança os braços, devido à quarentena de cumprimento obrigatório «no Lazareto», lugar de utilidade e higiene duvidosos, instalado na Torre de São Sebastião da Caparica, na margem sul do Tejo, onde regressará anos depois . Bordalo era, para o ministério do reino, um «emissário do Vómito Negro».
Antes do período formativo brasileiro, tinha deixado um álbum de caricaturas e o curiosíssimo fruto de colaboração com Júlio César Machado. Álbum de Caricaturas – Frases e Anexins da Língua Portuguesa reúne treze gravuras ilustrando provérbios e expressões populares em cenas de rua sobre lençóis, grandes livros e folhas de papel, pequenos palcos, que despertam relações e reacções em tipos populares, sejam fadistas, ardinas, janotas e velhas de lenço, cães, gatos e ratos, mas também diabretes… A fala («largar uma piada») e a sabedoria da rua («não há melhor espelho que amigo velho») são-nos devolvidas pela imagem. O essencial do volume está no texto notável de Machado, íntimo testemunho, como nenhum outro, da juventude de Bordalo. Ambos percorreram, por dentro e por fora, nas plateias e nos bastidores, Os Teatros de Lisboa , conseguindo roubar à Lisboa artística da época os traços principais. Mais do que pura ilustração, encontra-se além de pequenas sequências, peculiares correspondências entre o que se diz e o que se vê. Descrevendo ou comentando, com ternura.
«Tinha dias de uma melancolia, de uma desconsolação, de uma irritabilidade, que eu próprio, que fui um dos seus amigos mais íntimos, chegava a inquietar-me por ele.» É Machado quem conta .
«Todavia, por entre sombras e tristezas, continuava a ver em tudo assunto para caricaturas, coisas que escapavam à observação de toda a gente, saltavam aos seus olhos. Quando trabalhámos no livro Teatros de Lisboa sucedia perguntar-lhe eu nalguns pontos da escrita:
– Isto dá-te uma caricatura?
– Isso? Dá quantas se queira. Isso é uma mina!
E deveras lhe sucedia, com essas minas, o que acontece com as outras: enquanto os pródigos deixam perder os tesouros à proporção que os descobrem, enquanto os estouvados passam sem as verem e os empáfios apregoam que não prestam, o que entende da obra assenhoreia-se delas, enriquece, e ainda o público lhe fica agradecido.»
Basta atentar nos nomes para perceber quão produtiva e intempestiva rede de afecto e colaboração Bordalo foi estabelecendo com os “seus” escritores.
A pôr A Lanterna Mágica em movimento teve Guerra Junqueiro e Guilherme de Azevedo (ambos sob o pseudónimo Gil Vaz), passando este depois para O António Maria e para o bem sucedido Álbum das Glórias (então assumindo-se João Rialto e João Ripouco). «Em plena festa ele sugeria as malícias próprias para se acabar o mundo; Bordalo embocava a trombeta do juízo final e buzinava a troça do extermínio. Um era a explosão, o outro era o rastilho: Bordalo a bomba, Guilherme a vela mística.» Assim descreveu a parceria aquele que substituiu o escritor aquando da sua ida para Paris, o mesmo autor d’As Farpas que havia saudado o quadro de certo jovem como advento do realismo social, que agora com ele trabalhava apesar das diferenças, para mais tarde confessar que aprendeu a escrever vendo-o desenhar.
«Ele era uma bela flor de talento desabrochada na solicitação e no aplauso dos clubes, dos cafés e dos palcos, como um lírio deslumbrante de alvura sobre uma confusa escuridão de monturo. Eu era, para todos esses variados contactos do mundo jornalístico de Lisboa, aquilo que ainda hoje sou, — um ouriço cacheiro.
De sorte que, quando uma vez por semana, na antevéspera da publicação do nosso periódico, nos reuníamos (…) nada mais divergente, nada mais antinómico do que o critério em que cada um de nós baseara a sua opinião a respeito do acontecimento sobre que tínhamos de formular, no prazo de algumas horas, um comentário concorde e homogéneo de desenho e de escrita. Figura-se ver por cima da estonteante pro¬fundidade de um abismo alpestre, o encontro de duas cabras, chavelhos contra chavelhos, num passadiço sem guardas, de meio palmo de largura? Pois assim era, assim foi, durante anos, o encontro das duas opi¬niões, a do desenhista e a do escritor do António Maria.»
Seguiu-se Alfredo de Morais Pinto (Pan ou Pan-Tarântula), que o acompanhou até aos Pontos nos ii, coincidindo com Fialho de Almeida (Irkan), mas saindo antes da chegada de Eugénio de Castro (EU), entre outros, até que as páginas d’ A Paródia acolheram o jovem João Chagas (João Rimanso). No Brasil, contou com a escrita de José do Patrocínio em O Besouro. Com eles caçou os tipos, com eles transplantou árvores e as podou, com todos semeou flores, e gastou horas à mesa, em discussões mais o quanto acontece a quem partilha o mesmo tecto.
Os jornais foram a casa-palco de Rafael Bordalo Pinheiro, a um tempo esconderijo e grito, exposição e sussurro. A maior, mais movediça e irrequieta, foi O António Maria, de 1879, alargada com Pontos nos ii e a segunda série de O António Maria, acabando por formar um todo. As revistas eram, então, numeradas sequencialmente sugerindo a ideia de volume, de obra em progresso. As secções mantinham colunas fixas em cadência gráfica, que tinha na dupla central e na capa exclamações, algumas com cor, em prática percursora. Abrigavam textos muito ilustrados (“crónica da semana”, “secção de beneficiência”) que se transfiguravam em autênticas sequências narrativas. Esta «síntese do bom senso nacional tocado por um raio alegre desse bom sol peninsular» mostrará a inventividade da sua arte, a agudeza do olhar, se faz maduro um estilo, estende o pano completo dos seus temas, com o maior dos impactos, enfim, é aqui que mais se aproxima do seu programa. O António Maria «fará todas as diligências para ter razão, empregando ao mesmo tempo esforços titânicos para, de quando em quando, ter graça. Possuído destas duas ambições, está claro que O António Maria não tem outro remédio, na maioria dos casos, senão ser oposição declarada e franca aos governos, e oposição aberta e sistemática às oposições, o que não o impossibilita de ser amável uns dias por outros, e cheio de cortesia em todos os números». Uma rosa e alguns espinhos.
A Lanterna e os do Brasil – O Mosquito, Psiit!! o O Besouro – mais não foram que laboratório para o desenho e universidade para os assuntos. A Paródia, mero post-scriptum, quando já a cerâmica o atraía e a doença o consumia. O editorial desta não o esconde, avaliando com exactidão o fenómeno que contaminou tudo e todos, danças, revistas de teatro, colarinhos, botões de punho, mas também charutos, bengalas ou bolachas.
«O António Maria, meus senhores, foi a Regeneração, o Fontes e a sua Água Circassiana, o Ávila e o seu cache-nez, o Sampaio e os seus panfletos, o Arrobas e os seus editais, o Passeio Público e o lirismo do sr. Florencio Ferreira, a sra Emília das Neves, a «Judia» e os Recreios Whitoyne, mundo findo, mundo morto, de sombras, espectros, múmias, onde só poderíamos estar à vontade sob a condição de termos desaparecido com ele, o que não é evidentemente um facto.
Ficarmos dentro do António Maria seria ficar dentro de um museu, na situação de um velho guarda mostrando à curiosidade do seu tempo os despojos de uma época passada.
A Paródia é outra coisa, como o tempo é outro.
O António Maria foi um homem. Quando muito foi uma família.
A Paródia – dizemo-lo sem receio de ser imodestos – somos nós todos.
A Paródia é a caricatura ao serviço da tristeza pública. É a Dança da Bica no cemitério dos Prazeres.»
Se n’ A Lanterna publicou desenhos de Manuel de Macedo e nos últimos abriu espaço a outros autores, até internacionais, além da ajuda crescente do filho, Manuel Gustavo, por grosso pertence-lhe cada assoalhada, o mobiliário, decoração. O encenador total desenhou até os hóspedes-actores.
No louco movimento daqueles anos, o caçador fez-se de borboletas e fixou as principais figuras no Álbum das Glórias , quarenta e duas folhas, em doses avulso de estampa a cores e “biografia” à parte em negro mordaz. Embora o grosso da obra, e logo subintitulado Volume I, aconteça entre 1880 e 1883, as duas séries sucessivas, com três figuras cada, em 1885 e 1902, acompanham simbolicamente todo o percurso da maturidade de Rafael. O panteão anuncia-se como contendo «homens d’estado, poetas, jornalistas, dramaturgos, actores, políticos, pintores médicos, industriais, typos das salas, typos das ruas, instituições, etc» A maioria serão políticos, a abrir logo com os governantes à vez e responsáveis do Partido Progressista e Regenerador, logo o preferido Fontes Pereira de Melo, a que se seguem escritores e polemistas, ou ambos, como Eça ou Gomes Leal, os cantores e as actrizes. E, claro, o inevitável Zé Povinho.
Estava apontado pelo foco da recém chegada luz eléctrica o lugar das personagens na movimentada e musical encenação bordaliana: o coração.
Corpo, o palco dos actores
«Por um dom especialíssimo, inteiramente pessoal, bastava-lhe fitar por espaço de alguns segundos uma fisionomia humana para que, instantaneamente desenhada pelo olhar, ela lhe ficasse para sempre registada num esca¬ninho do cérebro, por efeito da mais pronta recepti-vidade e da mais prodigiosa retentiva visual que jamais conheci.» É, ainda por uma vez, o relato in vivo de Ramalho. «Assim, mentalmente concebido, o retrato era na sua memória uma espécie de aquisição fetal, um embrião indestrutível, um ser, que, à primeira evo¬cação da sua vontade, ele dava à luz, pelo bico de um lápis ou de uma pena, para cima de um papel. A criatura ia aparecendo ao acaso da nascença, de pés, de frente, de dorso ou de ilharga. E a cara do determinado homem, reduzida à imagem linear, era sob os dedos de [Rafael] uma coisa de que ele dispunha segundo o seu mais caprichoso arbítrio. Desde que se apoderava do seu homem constrangia-o a tudo: engor¬dava-o ou emagrecia-o, obrigava-o a chorar ou a rir, enobrecia-o ou apelintrava-o, tornava-o moço ou velho, aprumava-o, alcachinava-o, insuflava-lhe um ardor mavórcio ou incutia-lhe um medo infantil; e sem nunca o dessoldar dos seus essenciais elementos anató¬micos, deixando-o sempre idêntico a si mesmo, pessoal e inconfundível, fazia dele um génio, um herói, um imbecil ou um pulha.»
Não há história sem rostos e máscaras, sem a figura humana em acção. Vem de cedo esta sede de passar ao papel as criaturas torcendo-as em herói ou imbecil. Em privado, desafiando o pai, Manuel Maria, nas paredes do colégio, antes das setas públicas dirigidas às fraquezas e algumas grandezas nacionais. Os próprios alvos não deixarão de o atormentar, pedindo na rua para serem motivo de sátira, pelo contrário, queixando-se do exagero no nariz, da dissemelhança, ou simplesmente participando na grande homenagem de 1903. Quando alguém estranhou a presença de Hintze Ribeiro no funeral do artista, uma vez que foi, com Fontes e tantos outros, uma das figuras mais caricaturadas, aquele respondeu:
— Fui… E por isso mesmo quando quero recordar a minha vida política, folheio as páginas do Bordalo.
As páginas do Bordalo são gigantesca galeria de retratos de políticos e artistas, tanto mais reconhecíveis quanto homenageados eram. Na hora da morte, e não aconteceu apenas com Fontes, o assunto tornava-se sério e a página compunha gravura com o seu quê de solenidade. Mas a regra era os corpos esticados a todas as formas e também na qualidade de personagens abstractas, tão fortes algumas que ganharam carne.
O país, instituído pelos caricaturistas das gerações anteriores como esqueleto, ficou rico de representações: despido, moribundo, vaca exaurida, burra de metal, em bestiário inesgotável de metáforas, fechadas em grande com A Grande Porca . Isto sem tocar nas metamorfoses do Zé Povinho, que uma vez ensaiado em cabeçalhos e ilustrações, se fez sinal de povo n’ A Lanterna Mágica . Nas mesmas páginas surgiram logo os barrigas, o político-deputado que pouco mais é além de ventre inchado. Mais tarde, n’ O Besouro brasileiro, inventa o clonável Fagundes, deputado menor e medíocre, que ainda hoje faz parte do léxico daquelas paragens.
Nelas encontrará também inspiração para uma dupla de anti-heróis que terão honras de cerâmica: o janota de casaca e monóculo, Psit, é «a cabeça, a fantasia, o discurso», ao passo que o Arola boçal é «o estômago, o senso comum, o aparte».
Por lá deixará o Manel Trinta Botões, representação provocadora do emigrante português. Ao folclore popular foi ainda buscar a mui resistente velha de lenço, incarnação do conservadorismo, também cedo, muito antes de se tornar a Maria da Paciência, logotipo de Pontos nos ii e putativa mulher do Zé.
A verdade dos outros aplica-a com ferocidade a si mesmo. O corpo torna-se matéria tão plástica que se transfigura em gato. O felino alter-ego, que às vezes se chama Pires, só é ultrapassado nas aparições pelo próprio artista. Esta sua auto-ironia, compondo notável relação com os leitores, vai fazê-lo desenhar-se experimentando a gama completa de sentimentos e situações, todas as aparências: negro do Bié, gordo mandarim, gorila de monóculo, admirado e admirador, tremendo ou chorando, entediado ou endiabrado, feito bebé de bibe ou astrónomo, barrigudo e magricela, enforcado, agredido, doente. Em tiras e páginas inteiras, em folhetim continuado, conta de si, da sua desinspiração, da sua indignação, da sua alegria, da sua alimentação, do seu gosto e cada viagem, nalguns casos dando conta da recepção de vedeta que tinha, algures entre o dandy elegante e a pantomina carnavalesca.
Contudo, o “jornalista da gravura e folhetinista do lápis”, para pôr ponto final na primeira série d’ O António Maria usou a palavra para afirmação de individualismo magoado. «Eu não pertenço ao ajuntamento dos jornalistas por isso que estou sozinho e não há ajuntamentos só duma pessoa; eu não pertenço ao grupo monárquico porque este me chama revolucionário; eu não pertenço ao partido republicano porque este me alcunha de vendido!
Nestes termos, não podendo ser nem político, nem jornalista, vou fazer-me simplesmente operário – o que afinal de contas, talvez venha a ser mais alguma coisa.»
O horizonte bordaliano tem pouco de operário e ultrapassa em muito a hesitante perspectiva de um Zé Povinho que teima em não se levantar, derrubando a longa fila de Reis e Rainhas, que não sabe como alterar as regras de um parlamentarismo inerte, onde as eleições pouco mais fazem do que alterar cabeças dos bonecos do mesmo teatrinho . A passividade da criatura exaspera o criador, que advoga a defesa da República, nem sempre do lado dos republicanos, do mesmo modo que admira monárquinos, mas não adere à causa, pois olha para a Marianne e vê, além de bela mulher, o progresso, essencial à preservação de uma activa nacionalidade. Aqui se encontra o cerne da sua causa, até nas artes: a nação. O seu discurso gráfico assente na ideia escorregadia e impalpável da portugalidade, com tons de ma, nuelino nas decorações e nos decorativismos. Daí que, a dado passo e por causa do Ultimato, o John Bull vista como nenhum outro a pele de inimigo do Zé Povinho e de obsessão, que era também a do país. Piorando com a idade, só encontra igual no anti-clericalismo, por ser a Igreja conservador-mor. «Em política», observa Manuel de Sousa Pinto, «Bordalo é fundamentalmente republicano, em matéria religiosa irredutivelmente anti-clerical, e como cidadão, sinceramente igualitário e amigo dos humildes».
O combate principal é o da liberdade, que afinal tudo permite, sobretudo o paradoxo. Rafael Bordalo é um libertário em todos os sentidos até no do bon vivant. Reportou o quotidiano, como se fosse Carnaval permanente, ópera que não leva a sério, gargalhada na plateia que soa a reflexão. O debate de ideias incomodou uma ou outra vez os poderes, afinal tão maltratados. Em 1883, por uma versão da Última Ceia com o Zé no lugar de Cristo, foi levado à barra do tribunal. A agressividade não mais deixará de aumentar e em certo momento as querelas são tantas que Bordalo finge montar escritório na Boa-Hora . A censura, qualquer que seja, toma o lugar apetecível de figura-alvo. O notável libelo, «O que nós suprimiríamos» , é um exemplo dos procedimentos estilísticos, em plena força sintética, ao serviço de uma causa, da opinião. Um rosto perde língua, boca, orelha, olho até ser espaço em branco. O cidadão é o exacto contrário. Bordalo desenha para dizer, para se dizer. Rafael dança em perpétuo movimento, metamorfose em delírio. Veja-se a imagem-forte planta-carnívora que o persegue desde 1877 , quando era apenas um bailarino que se aparafusa pela vertigem ao chão da dança: «Metamorfoses – o Delírio da Valsa». Anos depois , é ele o rodopio, a roda viva, a vertigem, o vórtice, o terrível vórtice. Todos o tentam tirar, até o príncipe. Impossível, ele é um parafuso-espinho cravado que só a delicadeza soltará.