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Há quem diga que Bordalo Não Gostava de Fadistas
Mas, na verdade, Rafael Bordalo Pinheiro nunca deixou de os representar nas suas diversas publicações e cadernos de esboços. Em quase todas as publicações, de sua autoria ou da autoria de seu filho, Manuel Gustavo, ou de Jorge Cid, deparamo-nos com elementos gráficos associados ao fado, aos seus contextos e ao “fadista” enquanto personagem prototípica, com a sua imagem mole e vaga.

Fruto da sua época, e do gosto erudito pelo ambiente cultivado do Teatro S. Carlos, Bordalo não podia, naturalmente, colocar-se do lado do fado! O fado e os fadistas representavam o oposto ou a negação de tudo o que Bordalo valorizava: a acção, a modernidade, as artes cultivadas. O fado representava a forma doente de ser português. Precisamente por isso é que o fado e os “fadistas” foram instrumentais na sua obra. Ao vestir “à fadista” políticos, ideias ou situações, Bordalo gentilmente criticava-os sem ter de o fazer de forma directa. A desconfiança que se deveria ter perante o “fadista” era a mesma que o cidadão deveria experimentar perante o “político”.

Por isso, só por uma vez colocou o seu português prototípico que é o Zé Povinho a tanger a banza. Já os políticos, e em particular Mariano de Carvalho e Fontes Pereira de Melo, foram caricaturados como fadistas ou em contextos fadistas por diversas vezes.

A obra de Rafael Bordalo Pinheiro, sendo eminentemente caricatural, é um recurso etnográfico da maior importância para compreender o contexto e a ideologia dos círculos intelectuais e urbanos de Lisboa no último quartel do século 19. Estas representações constituem, também, um recurso iconográfico fundamental para compreender e ilustrar o universo social e cultural do fado, universo que nesta obra vê algumas das suas mais remotas referências gráficas. Por isso, este recurso digital, que congrega as representações do fado e dos fadistas nas páginas das publicações de Bordalo ou em desenhos inéditos, é tão importante. Olhando para este conjunto de desenhos, e para cada pormenor em cada um deles, fica explícita toda a ideologia que enformava Bordalo e os outros “rapazes do Chiado” que constituíam o círculo onde o artista se movimentava.

Nesta página, podemos ver imagens publicadas entre 1871 e 1904. Optámos por uma organização temática: as caricaturas de políticos; as invocações ou representações gráficas do universo do fado e dos fadistas; caricaturados diversos que surgem de alguma forma associados ao fado; os pequenos elementos gráficos de cariz decorativo que pontuam os textos; as representações da Severa; do fonógrafo e outras máquinas de música.

Nota: O levantamento que aqui se apresenta decorreu da pesquisa efetuada para o caderno Bordalo não gostava de fadistas, lançado no dia 2 de março de 2021.
Os exemplos sonoros escolhidos remetem para o Arquivo Sonoro Digital do Museu do Fado

O político fadista

A retórica gráfica do desenho caricatural de Bordalo Pinheiro era tão acutilante quanto gentil. Aparente paradoxo, mas eficaz resultado. Para parodiar os políticos, as suas decisões e o ambiente que geravam, Bordalo recorria muitas vezes à iconografia “fadista” – das roupas à guitarra portuguesa, passando pelas hortas e pela navalha – para comentar situações polémicas ou opções questionáveis.

Nesta secção, os “fadistas” são indivíduos concretos, normalmente pessoas da vida política nacional, tais como: Mariano de Carvalho, Fontes Pereira de Melo, José Luciano de Castro, Anselmo Braancamp, Hintze Ribeiro, António Maria Arrobas ou Campos Henriques, entre outros.

O fado e os fadistas

Bordalo, já o dissemos, não podia ser amante de fado nem dos fadistas por eles representarem tudo aquilo que, a seu ver, marcava negativamente a sociedade portuguesa e a impedia, como um todo, de alcançar o necessário progresso, próprio de uma sociedade avançada, europeia e moderna. Tal facto, ou especialmente por isso, nunca lhe turvou o olho e a precisão do lápis no desenho rápido do fadista e do fado. São dele as imagens mais etnograficamente ricas deste universo. Não só pelo detalhe com que são representados, mas sobretudo por aquilo que está significado (nem sempre de forma explícita) no desenho. Aqui estão agregadas todas as imagens em que o “fadista” surge representado ou em que pessoas sem identidade concreta definida surgem a tocar guitarra portuguesa.

No Arquivo Sonoro Digital do Museu do Fado podem escutar-se interpretações de desgarradas, da ‘Margarida vai à fonte‘ e do fado corrido, referências presentes nos desenhos dos artistas.

Outros caricaturados

Na viragem do século 19 para o século 20, o fado e os fadistas tornam-se tema recorrente no espaço público. Por isso, tal como o fado se torna vestimenta para políticos, outras pessoas também lhe vestem a pele. Aqui encontramos alguns músicos passíveis de ser enquadrados neste universo do fado (poucos, já que sabemos a sua má-vontade para com estes artistas), encontramos sobretudo actores (de teatro musicado) a representar papéis ligados ao fado. Decidimos juntar o nosso Zé Povinho nas três únicas vezes que parece estar ligado ao fado, duas a tanger uma guitarra portuguesa e outra, ao piano, a tentar tocar um fado. Qualquer destas pessoas representadas pode ser identificada mas não pertencem ao universo da política (… não sabemos se o Zé Povinho iria apreciar esta exclusão, mas tal pode ser justificado se assumirmos o olhar complexo do “pai” Bordalo).

No Arquivo Sonoro Digital do Museu do Fado podem escutar-se interpretações do fado hilário citado em dois dos desenhos de Rafael e de Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro.

As vinhetas

É provável que seja esta a categoria que denuncia um certo fascínio bordaleano pelo fado. É aqui que provavelmente Bordalo acaba por “trair” a sua ideologia. Não sendo um amante por princípio  (já o dissemos à exaustão), Bordalo não deixa de o representar e usar os seus elementos gráficos na ornamentação das páginas das suas publicações. Curiosamente, há medida que avançamos cronologicamente na sua produção, mais comum e corrente é a integração desses elementos “fadistas” nas suas páginas. Algumas das vinhetas surgem repetidamente no decurso de vários números de uma mesma publicação, no entanto, aqui só estará representada numa das suas múltiplas ocorrências.

A Severa de Dantas

Pela mão de um reputado escritor como era Júlio Dantas, com todo o romantismo exacerbado da história, Bordalo deixou-se impressionar pela peça A Severa, impressão que se estendia a toda a sociedade lisboeta e que irá perdurar até bem entrados no século 20 (se não mesmo até hoje). Decidimos por isso reunir aqui um conjunto de representações em que a Severa surge desenhada, seja em referência directa à peça de Dantas, seja reflectindo o impacte social da mesma, mas também a persistência gráfica da imagem da “Severa” com a sua saia vermelha de barra preta, elemento que iremos encontrar em Malhoa e até em Amália.

No Arquivo Sonoro Digital do Museu do Fado podem escutar-se interpretações do fado ‘A Severa‘.

O Phonografo

Ainda que fosse uma novidade tecnológica da época, o também industrial Bordalo não apreciava a possibilidade de ouvir o som gravado. O foyer do S. Carlos e o convívio com os actores e cantores eram tudo para ele, logo era natural que não apreciasse ouvi-los por intermédio de uma máquina, por maior fascínio tecnológico que ela provocasse… A sua episódica presença e os modos como surge tornam este conjunto de imagens um importante elemento de contextualização.

Aqui reunimos as poucas vezes que representa um fonógrafo. Não sendo uma máquina de reprodução do som mas um instrumento musical mecânico e automático, decidimos incluir nesta secção a única representação que fez de uma caixa de música.

Sempre Bordalo!

Não vale a pena detalhar muito. Arriscamos mesmo a dizer que não vale a pena detalhar nada. No fim de contas… quando ninguém está a olhar por cima do ombro do artista, ele lá está, consigo mesmo, a desenhar-se a cantar um fado.

“Sou da última geração em que existiam bolsas de resistência ao fado enquanto universo ligado a uma maneira resignada de ser português. Por isso, quando me tornei antropólogo, poucos escreviam sobre fado e assim tive a oportunidade de participar em processos fundamentais para a sua patrimonialização, nomeadamente a preocupação com os documentos sonoros a que agora estou dedicado, coordenando a equipa instaladora do Arquivo Nacional do Som. Nos desenhos de Bordalo vi as raízes dessa resistência.”

Pedro Félix
Antropólogo
Coordenador da equipa instaladora do Arquivo Nacional do Som