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A obra de Bordalo sob o olhar de José-Augusto França

Nesta página reunimos um conjunto de excertos da obra de José-Augusto França dedicados a caricaturas da autoria de Rafael Bordalo Pinheiro.

Teixeira de Vasconcelos
O Calcanhar de Aquiles, 1870

Teixeira de Vasconcelos, o romancista d’ “O Prato de Arroz-Doce”, crítico e cronista lisboeta, é figurado em diálogo com o caricaturista, deitando a cinza do charuto para um cinzeiro que este reverentemente lhe oferece – e do qual saem, emolduradas em volutas de fumo estilizado ou em gavinhas de planta trepadeira, as cenas miniaturizadas que adiante se veriam e mais aquelas que viriam a entrar no abortado segundo fascículo [de “O Calcanhar de Aquiles”]. É uma dedicatória da obra que o escritor agradece, lembrando a importância da caricatura em geral e estabelecendo comparações particulares.
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, p. 67

Viagem de Rafael Bordalo Pinheiro para o Brasil
O Mosquito, 11.09.1875

Conta ele as impressões da viagem numa série de desenhos em banda – e, saindo de Lisboa “agoniado e triste”, vêmo-lo deitado no beliche, enjoado, sonhando com pretas gordas e papagaios magros. À chega, porém, ele confessa o seu espanto, entre abraços amigos e vistas dum “imenso luxo”, com senhoras reclinadas em carruagens, cavaleiros à portinhola, uma elegância e um “chic” que lhe agradam, “sumptuosos salões, magníficos bailes”, concertos que Ciríaco de Cardoso rege, corridas de cavalos… A preta do pesadelo “dissolveu-se numa imagem divinamente encantadora” – e é um num airoso que lhe enche outro sonho. Para dar conta de tais maravilhas (“que mulheres!”, exclama ele, desenhando três graciosos perfis, onde se advinham seios de pele mate) vai “aparar o lápis – e adeusinho até sábado”. Nessa crónica, Bordalo tem maneira de meter dezassete vezes o retrato, queixoso ou risonho, espantado ou impante…
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, p. 126

No Lazareto de Lisboa, 1881

O regresso fez-se logo no fim de março, a bordo do “Valparaíso”, com passagem legal pelo Lazareto de Lisboa, que lhe inspirou um livrinho publicado em 81 – última recordação duma aventura que lhe deixou, para sempre, lembranças doces e amargas, com saudades pelo meio.
“No Lazareto de Lisboa” é dedicado a Cunha Vasco, companheiro da “república” das Laranjeiras, e reúne “recordações que ao voltar à pátria formulou de muitas coisas que deixou ao longe nas terras que em linguagem nobre se chamam ainda de Santa Cruz” e “primeiras impressões que sentiu (…) ao pousar o pé no torreão natal” – acolhido não por “braços amigos” mas pelos dos “guardas da saúde” que o obrigaram a quarentena no lúgubre pavilhão do Lazareto, “considerado para todos os efeitos um emissário da peste negra. Ninguém poderá dizer “deste Lazareto não beberei” – e Bordalo deixou passar um ano a ver se alguma “impressão mais picante” se desfazia e se se desfazia o próprio Lazareto. A capa, a cores, mostra-o por detrás de uma porta chapeada, com um postigo gradeado (onde apoia o grande nariz e donde passam as mãos armadas de “crayon” e pena), e que deixa ver, por baixo, os próprios pés.

José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, p. 154

Theatros: Um supplicio!
O António Maria, 07.12.1882

Mas o que mais toca Rafael Bordalo neste diálogo amistoso com o público, o seu público, cujos aplausos espera e obtém, são pequenas anotações quase familiares, ou mesmo familiares (…). Podem servir de motivo (…) uma pena partida, episódio comicamente contado, com consequência de cadeira de rodas (que o impedem de ir ao teatro e à ópera, com grande desespero seu) e de pé coxo (que o gato imita), e um novo acidente com uma pedra litográfica que lhe caiu sobre o pé já curado…
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, p. 236

Em Paris – Espinhos e Rosas
O António Maria, 23.03.1882

(…) grande página central, de esfusiante “verve”, em que narra uma viagem a Paris, janota vaidoso e contentíssimo, rodeado por uma sarabanda de gentes pedindo o “pourboire” (…)
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, p. 238

Vinte Annos Depois
Paródia – A Comédia Portugueza, 11.06.1903

(…) Rafael Bordalo tomara filosoficamente a idade e a doença, quando duma grande homenagem de amigos publicou então n’ “A Paródia” o seu retrato mais célebre, sob o título de alusão romântica: “Vinte Anos Depois”.
Exactamente vinte e quatro anos passados desde que em 1879 lançara “O António Maria” – e era este moço pimpão, de monóculo, coco, orquídea na lapela, paletó alvadio e bengala de malaca, que oferece o lume do seu cigarro, com ar condescendente. A quem? A ele próprio, por quem o tempo desses anos tinha passado, transformando-o no cavalheiro respeitável, de sobrecasaca negra, que ergue a cartola cerimoniosa a pedir o mesmo lume. Bordalo II diminuíra de estatura, mais grosso de espáduas, o pescoço enterrado no colarinho, pende-lhe o monóculo, a bengala de pau-brasil envernizado acomoda-se-lhe ao braço. A barriga crescera sobre o corpo esbelto de Bordalo I. Aos pés das duas figuras, dois gatos, diferentes também, um saltitante e folião, outro pacatamente sentado, emblemas dos patrões respectivos. Só o nome será, necessariamente, o mesmo “Pires”…
(…) tudo ficava dito neste desenho excepcional, de jocosa melancolia: vida do homem, vida da cidade, que era também a dos seus mais velhos e sempre fiéis leitores a caminho duma idêntica morte, através de idênticos trajares das modas e de idênticos risos, da vida, sobretudo política. Uma inteira cumplicidade de geração se define nesta imagem, que é das mais brilhantes e mais significativas da arte portuguesa do século XIX. Dele se fez um bilhete postal que correu.

José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, pp. 482-483

Carro allegorico para o Carnaval
Paródia – A Comédia Portugueza,, 18.02.1903

O Zé será, inevitavelmente, a múltipla besta de tiro, puxando um carro carnavalesco, que é o Estado, bem alegórico, entre a dívida e o deficit, e rodado pelo José Luciano e o Hintze, da “rotação” partidária.
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 91

(…) o Carro do Estado, no projeto alegórico que Rafael Bordalo desenhou para o Carnaval de 903, puxado por Zés Povinhos que o juiz Veiga chicoteia, e rodando com duas rodas ornamentadas de cabeças de Zé Luciano e de Hintze, é uma enorme mesa do Orçamento, bem servida, sobre a qual um Pierrot de nariz postiço (o “Deficit”) sopra uma corneta, e duas damas despeitoradas e em calças íntimas, a Política de Negócios e a Dívida, erguem taças de champanhe ou alçam a perna.  
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, pp. 447-448

Abertura de Camara
Paródia – A Comédia Portugueza, 14.01.1903

De novo Rafael Bordalo, já em 903, surpreenderá os dois compadres matando o porco, para um sarrabulho comum, de comendas, comissariados régios e embaixadas repartidas (…)
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, p. 428

Páginas centrais d’A Lanterna Mágica nº 5, de 12 de Junho de 1875, onde foi publicado o primeiro desenho de Zé Povinho feito por Rafael Bordalo Pinheiro.
Calendário Portuguez
Santo António de Lisboa: – Prá cêra do Sant’Antó….

A Lanterna Mágica, 12.06.1875

Na véspera do Sant’António de 1875, nasceu «seu Zé Povinho», calças remendadas, botas rotas, olhar alvo, mão coçando aflita a grenha farta – a outra estendendo dez réis para a cera do Santo. O peditório é feito por António de Serpa, ministro da Fazenda – e no altar está Sant’António Maria Fontes Pereira de Melo, chefe do Governo “regenerador”, tendo ao colo, como o Menino-Deus, o senhor D. Luís, rei de Portugal. Ao lado, vigia o barão do Rio Zêzere.
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 23

(…) figura do “Zé Povinho”, aparecida no número 5 da revista, em 12 de Junho (por descuido com data de 19). Será personagem constante da vida nacional, através da obra de Rafael Bordalo, e muito para além dela, até à actualidade: será, em suma, imagem e símbolo do povo português, enganado, sacrificado mas refilão, capaz de riso e surriada, nos baldões da história que se faz sem ele – mas à custa dele… De origem rural e marginal na vida urbana em que se insere, “Zé Povinho” pasma – e vai “ficando na mesma”, como é comentário insistente do seu autor. (…) “Seu Zé Povinho”, cujo nome está marcado na perna das calças rotas, coça na cabeça, erguendo o chapéu braguês que o caracteriza e caracterizará, ao mesmo tempo que esportula “pr’à cera do Sant’António”, que, no trono popular do seu dia, é António Maria Fontes Pereira de Melo com o Menino Jesus – D. Luís I ao colo. O pedinte é o ministro da Fazenda, de ardósia a tiracolo e bandeja na mão: no ano económico de 1875-76, as receitas ordinárias, graças a sucessivos aumentos de impostos, subiram a perto de vinte e quatro mil contos, mais cinquenta por cento que à chegada de Fontes ao Poder, quatro anos atrás. Vigiando a “quête”, o famoso barão do Rio Zêzere, ou “do Chicote”, comandante temido da Guarda Municipal de que Bordalo já se ocupara. Os versos falam do “Doce António sem malícia / Que triunfas do pecado / Com o auxílio da polícia”…
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, pp. 110-112

Surge pela primeira vez, em A Lanterna Mágica de 12 de Junho de 1875, a personagem mais conhecida da galeria bordaliana – o Zé Povinho, aqui contribuindo para o peditório de Fontes/Santo António.
O figurão irá tornar-se, ao longo da produção de Bordalo, um autêntico ícone, uma imagem arquetípica e perene do povo português. Mas não apenas do português abrutalhado, apatetado, esportulado, vigarizado pelo sistema político e pelos políticos em si, como classe que dele apenas pretende o voto quando convém e os impostos que alimentam o erário. Mais do que isso, o Zé será também o especialista da esperteza saloia e do expediente, que em situações extremas intenta despojar-se da albarda e pontapear traseiros importunos; e que, em tempo de crise nacional, é capaz de se erguer, robusto, em defesa do que entende como seu torrão natal.
“O Zé Povinho, Sempre o mesmo”
Guia Museu Bordalo Pinheiro, 2005, p. 129

O Zé Povinho na História
A Paródia, 23.07.1903

Vinte anos depois, focando a história mais recente, Rafael Bordalo mostrará o Zé sucessivamente deitado-levantado-deitado, desde 1807 até 1903. No fim da história actual, um passarinho da Guarda Municipal, empoleirado na “Árvore da Liberdade”, faz-lhe caca para cima.
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 31

O seu papel na história pátria é esse e não outro: dormir deixando fugir D. João VI, reinar D. Miguel, assinar a paz de Gramido ao fim da Patuleia – e agora ainda com mais pesado sono, caindo-lhe na cabeça a caca do pardal-Veiga, empoleirado na Árvore da Liberdade… Entre uns e outros sonos, porém, Zé Povinho levantara-se: em 1820, em 36, ante o Ultimato de 91. Em vão: “Nunca se levanta que se não deite…” 
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, p. 477

O Soberano!
Álbum das Glórias, Setembro 1882

Zé Povinho, simplesmente, no Álbum das Glórias. Apresenta-o João Ribaixo-Ramalho Ortigão, que lhe afiança os quase cinquenta anos de idade e lhe conta a história – prevendo o dia em que de Povinho passe a Povo, “dia tempestuoso” em que “mudará de figura”. Dia ainda longínquo, decerto, em que acabará a tutela dos seus “sábios e carinhosos pais, os Públicos Poderes”. De qualquer modo, a epígrafe, tirada da sabedoria do biografado, diz: “Albarde-se o burro à vontade do seu dono!” Por isso a estampa se intitula O Soberano!
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 29

A Actualidade – A indifferença mascára a miséria
A Paródia, 26.06.1901

A sua indiferença, deitado sobre um cacho de uvas revelador, “mascara a miséria”? Rafael Bordalo é simbolista e pratica a “arte nova”, lembrado dos cartazes de Mucha.
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 48

O Dia de Reis, O Antonio Maria, 06.01.1881. Deitado, Zé Povinho dorme enquanto sobre ele estão todos os Reis de Portugal. Nas páginas do jornal pergunta-se: Levantar-se-á?
O Dia de Reis – O Rol dos Santos Reis
O António Maria, 06.01.1881

É Dia de Reis, em 1881 – e a história de Zé Povinho confunde-se com a do seu país. Sobre o corpo marcham-lhe os reis de Portugal, desde o conde D. Henrique, “a quem o rei de Leão doou o Zé Povinho para ele e para os que dele descendessem”, até um príncipe real, último descendente da “boa senhora gorda d’azul e branco”, que em o número 31 na série real é D. Maria II. E pergunta Bordalo se o Zé se levantará, um dia.
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 30

(…) vasta intenção histórica compete ao “Rol dos Santos Reis”, que em 81 faz marchar sobre o Zé Povinho adormecido (“levantar-se-á?”) a inteira teoria dos reis de Portugal, desde o “conde D. Henrique a quem o rei de Leão doou o Zé Povinho para ele e para os que dele descendessem” até “D. Maria II, a boa senhora gorda de azul e branco”, e depois dela, “a bem, conhecida família”.
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, p. 206

Com a albarda por travesseiro, Zé Povinho dorme o sono dos justos. E sobre ele vai desfilando, em exaustivo cardápio, toda a galeria dos reis portugueses, que dele fizeram propriedade sua e eternamente passiva. Mas será que o Zé Povinho “levantar-se-ha” algum dia? – pergunta Bordalo, sugerindo que a resposta irá ser em breve afirmativa.
“Contra todas as fatalidades que a albarda simboliza e resume, ele não conhece senão um meio de resistência: atirar com a albarda ao ar. Esta metáfora profundamente vaga, a que ele nunca em sua vida conseguiu aliar o sentido de um único facto preciso e claro, constitui a enciclopédia científica e literária de todas as suas ideias acerca dos direitos do homem e do cidadão.” – comentava Ramalho Ortigão em As Farpas.

“O Zé Povinho, Sempre o mesmo”
Guia Museu Bordalo Pinheiro, 2005, p. 145

Depois das Eleições
O António Maria, 09.09.1880

O Zé Povinho, assim sujeito aos reis e aos ministros (estes ou outros), estará sempre “à vontade do seu dono”, sob a albarda que definitivamente lhe completa o retrato, por sugestão duma violenta diatribe de Mariano de Carvalho no Diário Popular. Aparecida já em Março, a albarda é adoptada aqui num desenho famoso – e sobre ela, o rei e o ambíguo Mariano e mais o Braamcamp, o Barros Gomes e o José Luciano, três ministros do “progressismo”.
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 40

A albarda, já vimos como a aceita (ou não, em reacção imaginária, simples hipótese, mera possibilidade!) – mas o deleite do seu uso exprime-se na mais célebre das imagens de Zé Povinho, em 9 de Setembro de 80. Sentado no chão, o riso de novo alvar, tem a albarda em cima, e, em cima dela, o rei puxa-lhe um dente com um bridão improvisado, enquanto o próprio Mariano de Carvalho lhe espicaça o lombo, e sentados ao alto, os progressistas Braamcamp, Barros Gomes e José Luciano se acomodam. 
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, pp. 252

A Partida
O António Maria, 10.05.1883

E carrega ainda com a Lista Civil da Casa Real, cujos membros lhe enchem os alforges. Fontes, coroado também (é o “rei António”), tange o burro.
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 67

Retrato novo da politica velha: O balanço da paz
O António Maria, 30.06.1881

É a ordem das coisas: Zé Povinho base dum balouço-Carta Constitucional sobre o qual sobe o Fontes e desce o Braamcamp, ou vice-versa, conforme as conjunturas partidárias. Para a existência de tal ordem, o Zé sabe-se resignada e filosoficamente indispensável.
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 81

A Escada do Zé
Pontos nos ii, 18.03.1886

Zé Povinho é também escada do Poder – e Mariano de Carvalho, hábil e ambicioso, algo republicano e Catão puro, tornado “poder oculto” nos princípios do Partido “Progressista”, irá subindo por ele acima, até ser ministro da Fazenda, em Fevereiro de 1886.
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 42

Mariano é-nos apresentado em “Pontos nos ii” numa violenta caricatura que sublinha a sua evolução oportunista, desde o republicanismo de 79 até uma lenta subida das escadas do trono, de benesse em benesse, de curvatura em derretimento sobre o lombo de Zé Povinho, suporte da escada…
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, p. 290

O Ultimo Imposto
O António Maria, 10.01.1885

“Mas a nudez não chega, e “o último imposto” levará a própria pele ao Zé Povinho. Recebe-a o Fontes, El Rei e o seu comandante da Municipal, o Macedo-berloque.
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 74

Quanto aos impostos, a sua intervenção é simples, como ele próprio, “povinhorum contribuintibus”: trabalha, sua e paga, como um asno (…). E tanto paga (para os caminhos de ferro, por exemplo – ele que anda a pé!) que o vemos, ao fim d’ “O António Maria”, feito esqueleto, coberto de etiquetas de impostos, a entregar a Fontes a própria pele, que é o que lhe resta – depois de, ao princípio do jornal, ter entregue toda a roupa, e mais ainda, ao seu concorrente o ministro progressista da Fazenda.
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, pp. 255-256

A sentença do tribunal de Berne
A Paródia, 11.04.1900

Mais quinze anos, e de novo o Zé tem de pagar internacionalmente, condenado por uma sentença do Tribunal de Berna a uma indemnização de seiscentas e doze mil libras aos Caminhos de Ferro Ingleses, de Lourenço Marques. Sobre nuvens sangrentas, ministros e notabilidades “progressistas”; debaixo delas, Zé Povinho anda de ligaduras e muletas. Depois se sentará e “deixará andar”, como já vimos.
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 59

Vítima da condenação do Tribunal de Berna, saindo estropiado da aventura jurídica que condena o país a uma pesada indemnização internacional, Zé Povinho acaba por se resignar (…).
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, p. 473

O dia d’Hoje – Galeria Clássica do António Maria – A Ceia de Zé
O António Maria, 06.04.1882

Eis Zé Povinho entrado na vida artística clássica, através da Semana Santa e de Leonardo da Vinci. É a Ceia – que traria um processo judiciário (uma “querela”, dizia-se) a Rafael Bordalo. Os que lho moveram estão ali, apóstolos de vário pêlo. Brancaamp, chefe dos “progressistas”, Dias Ferreira, chefe dos “constituintes”, El-Rei, o governador civil Arrobas, Serpa, Barros e Sá, Pinheiro Chagas, Mariano, Burnay, Luciano Cordeiro, o próprio Arriaga, já deputado republicano. Fontes é o Judas, inevitavelmente.
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 28

O dia d’Hoje – Galeria Clássica do António Maria – A Ceia de Zé
O António Maria, 06.04.1882
Ceia do António
O António Maria, 22.03.1883

Esta página insere-se na lista da adaptação de quadros célebres, processo já usado nos jornais brasileiros de Bordalo. Agora o quadro mais célebre é “A Ceia”, de Leonardo, em 82, que figura o Zé Povinho em Cristo, no meio do ministério fontista de chefes de partido, deputados, o Arriaga republicano, Burnay, Arrobas, D. Luís é S. Pedro, sendo Fontes o próprio Judas. O desenho notabilíssimo valeu a Bordalo uma querela do governador civil Arrobas – que sobre ele desce como um raio de luz, três números depois… No ano seguinte, o próprio Bordalo se retrata em Cristo da Ceia, então rodeado por juízes e polícias e pelo ministro do Reino, Barjona de Freitas – S. Pedro. Mas declara astuciosamente que não é cópia do quadro célebre e sim da Boa-Hora – isto é, não tem nada que ver com a vida do Senhor…
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, p. 202

O Dia dos Votos, O Outro Dia
O António Maria, 18.08.1881

O Zé Povinho é a eterna vítima: apaparicado pelos partidos, “regeneradores” ou “progressistas”, em época eleitoral, dá a vitória a uns ou outros. Neste caso deu-a aos primeiros – que logo lhe deram o que ele não queria nem esperava. Moralidade da história… Resta dizer que o doce é a cabeça d’El Rei, com calda de açúcar.
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 51

Á Escolha
Pontos nos ii, 10.12.1885

Mas Zé Povinho hesitará outra vez, no ano seguinte – o eterno carneiro com batatas do Fontes, e a lista de nomes que a República lhe apresenta. Resultado: ganharão os “progressistas”…
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 115

O António Maria, 17.07.1884

Em vez de servir de assento aos homens do Fontes ou do Braamcamp, Zé Povinho passa a andar aos ombros dos republicanos – e começa a gostar de andar ao colo…
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 114

Politica: O que é – O que póde ser
O António Maria, 11.03.1880

Rafael Bordalo interroga-se sobre a sua personagem, mostrando o que Zé Povinho é – pobre diabo debaixo de albarda (a imagem surge aí pela primeira vez), ante um rei cuja capa alberga os vários políticos da época. E à vista de um palanque de reis e imperadores risonhos, e de uma República Francesa algo chorosa.
… – mostrando depois o que ele pode ser: isto é, o próprio Povo, erguido, atirando a albarda pelos ares, arregaçando as mangas da camisa e empunhando uma picareta de trabalho. À volta, espantam-se e fogem rei e políticos; no palanque, as figuras régias levam as mãos às coroas, e a França aplaude.

José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 101

Aqui [nas páginas do “António Maria”] recebe ele a albarda, que o caracterizará para sempre, no seu contentamento rústico, em mal de cidade: é com a aceitação deste “trajo” que a sua retórica se perfaz, em Março de 80. Uma frase recente de Mariano de Carvalho, no “Diário Popular”, aconselhara cinicamente a D. Luís, como norma de Governo, “albarda, Real Senhor” (“o povo quer e pede mais albarda”) – e esta frase logo será explorada por Bordalo, pondo as duas hipóteses históricas da vida política: “o que é” e “o que pode ser” o Zé Povinho. No primeiro caso, vêmo-lo a quatro patas, riso alvar nos beiços e albarda ao lombo, perante o rei com sua coroa, seu ceptro e seu manto de arminhos – que, também para Mariano, numa expressão famosa, era “capa de ladrões”. Sob ela, a capa, acolhem-se atuais ministros progressistas de Braamcamp e ex ou futuros ministros regeneradores, como o próprio Fontes, e Serpa, e ainda Mariano de Carvalho, que virá a sê-lo, num novo Governo de progressistas, em 86; em redor e de palanque, as testas coroadas da Europa e do Brasil, risonhas, e uma República Francesa chorando. No segundo caso, contando “o que pode ser” o Zé transformado em Povo e “atirando com os aparelhos ao ar”, vêmos-lhe a figura descomunal, ar severo, arregaçando as mangas e empunhando uma picareta – enquanto foge o rei e se escapam os seus ministros e mais politicagem (o Ávila, o Dias Ferreira), num pânico que toma também a tribuna da realeza, onde mãos aflitas seguram as coroas às cabeças, e a França aplaude. No chão aos pés de Zé Povo, uma cartilha de aprender a ler, aberta nas primeiras folhas. “Esta página não é dedicada aos frequentadores de S. Carlos”, diz uma N.B. à guisa de legenda, em que o” dilettante” Bordalo demarca campos da vida nacional. Não sem lembrar, involuntariamente, a importância do outro campo…
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, pp. 251-252

A propósito do concurso da Alfandega
O António Maria, 27.12.1883

Hintze Ribeiro, ministro da Fazenda de Fontes, envolvera-se num caso de nepotismo a propósito dum concurso para a Alfândega – e, acusado pela opinião pública, disse que não se importava com ela. Zé Povinho responde-lhe a pontapé – e põe-no à margem das páginas litografadas do António Maria, e aí o conservará, números a fio, de quarentena.
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 104

É um dos melhores desenhos de Bordalo: Zé, com um pontapé certeiro, expele o ministro da Fazenda para a margem da página, como já fizera a um desenhador que o insultara no Brasil, assim o figurando nas páginas d’”O Besouro” ou ao cronista Alberto Pimentel em 80 (…).
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, pp. 174-175

As eleições em Lisboa
O António Maria, 03.07.1884

Zé Povinho decide-se: o barretinho vermelho convenceu-o, o carneiro com baratas vai pelos ares, com pânico de Fontes e de Mariano.
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 113

A República é, para Zé Povinho, um mistério: mesmo que (…) dê outro pontapé no caldeirão do carneiro com batatas com que habitualmente lhe compram o voto (…), a decisão não lhe aparece no horizonte. E a sua história, em vaivéns de indiferença, medo, sono e revolta, é a história da sua longuíssima hesitação.
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, p. 256

Protecção á industria Nacional
O António Maria, 13.08.1891

O mesmo tratamento para a indústria estrangeira, que os ministros olham, impotentes – e que o Povo tem de proteger. Rafael Bordalo, seu filho e seus colaboradores (“nós todos”) toma pessoalmente partido.
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 105

Crónica do Centenário
O António Maria, 17.06.1880

Trata-se de um grande momento da vida portuguesa [o centenário da morte de Camões] que, politizado, redundou em vitória do recente partido republicano. Um dos organizadores do famoso cortejo cívico foi Ramalho Ortigão, tendo Teófilo Braga já como mentor positivista. As festas do “Santanário” (como troçava Antero) foram mal vistas pelos poderes públicos que se alhearam, deixando espaço aos republicanos que delas tiraram largos dividendos de popularidade política. (…) entre gente que o vitoria e de barrete frígio na cabeça, Camões reconduz um rei e o seu ministro José Luciano envergonhados, agradecendo-lhes “não terem ido à sua procissão e terem-no feito republicano, com o que muito ganhou a ideia”. 
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, pp. 225-227

S/título
O António Maria, 28.09.1882

O que o Zé não tem é amor à pátria, diz-lhe a Liberdade – República ao ouvido. Não terá mesmo? Zé Povinho interroga-se, dedo na boca, albarda no braço. Em redor do trono, é a dança de Fontes, Braamcamp, Hintze e Burnay.
José-Augusto França
Zé Povinho 1875, 1975, p. 110

“(…) vagamente escutando uma República (a que o jornal chama apenas “Liberdade”) que o acusa de não ter amor à pátria (“Han?” – responde ele, perplexo) (…).
José-Augusto França
Rafael Bordalo Pinheiro, 1980, pp. 257