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Bordalo à Mesa

18 de Maio de 2014 a 30 de Junho de 2021

Rafael Bordalo Pinheiro era um “bom garfo”! A sua obra multifacetada espelha o gosto por estar à mesa e apreciar a boa gastronomia. Mas também regista a dieta alimentar, a culinária, os espaços de consumo e a etiqueta à mesa, do último quartel de Oitocentos até ao início do século XX. À semelhança dos escritores contemporâneos, Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão e Fialho de Almeida (os últimos, seus colaboradores literários), o artista retrata a sociedade portuguesa à mesa, sem se excluir. A exposição “Bordalo à Mesa”, comissariada por Pedro Bebiano Braga, convida a uma degustação múltipla desta vertente deliciosa da obra bordaliana.

Alimentos e Cozinha

No desenho, pintura e cerâmica de Rafael Bordalo, estão representados os alimentos e as bebidas que se compravam no tradicional mercado, na venda ambulante, ou já nas lojas, casas de víveres e armazéns da capital. Sejam produtos alimentares das hortas e quintas dos arredores, do rio e do mar, ou de fabrico industrializado, para os quais o artista concebeu rótulos, embalagens e publicidade, sobretudo, anúncios que publicava nas capilhas e páginas dos seus jornais.

Nas alusões alimentares, com maior frequência, registamos: bacalhau, pescada, enguias, lagosta, caranguejo e várias conchas; peru, galinha, carneiro, porco e enchidos; pão, feijão, cebola, alho, couve, alface, tomate, nabo; castanha, maçã, uvas, melão, ananás; manteiga, bolachas, como os biscoitos O António Maria, pastéis e sorvetes. Nas bebidas referenciamos, sobretudo, vinho, incluindo o do Porto Bordalo Pinheiro, chá e chocolate; em menor quantidade, café, xaropes, licores, cognac, soda, genebra, cerveja, champagne, etc.

Fora de casa, são os hábitos populares alfacinhas de ida às hortas, a frequentar retiros como o Perna de Pau, ao Areeiro, ou a Águia Roxa (antigo Papagaio), na Estrada de Sacavém, para provar petiscos e pitéus, cozinhados à fogueira ou em fogareiro de barro. Mas Rafael Bordalo, também, noticia o quotidiano urbano, no consumo civilizado à mesa do café, ou melhor, do restaurante com chef reconhecido pelos gourmets, citando o grande João da Mata. Não esquece os espaços domésticos, a cozinha e a sua chaminé, ou a mesa da casa de jantar.

Metáfora bordaliana

A compra dos alimentos, a culinária e a mesa serviram para inúmeras metáforas de crítica política. A matança do porco e a sua importância na economia doméstica, à escala nacional, ganha um dobrado significado metafórico. Expressões correntes como “mão de nabos”, “castanha da boa”, “caldo entornado”, desaguisado”, “escamado” são reforçadas pelo desenho do cartoon político, resultando num humor hilariante. Caso à parte, pela sua importância no “cozinhado” eleitoral e pela frequência a que a ele recorre, é o prato de “carneiro com batatas”, denunciando estratégias políticas. Até as ementas são propósito de crítica, divertida na armação das travessas, e contundente num projecto de orçamento do estado.

Às vezes é difícil separar a metáfora política da social, vendo travestidos os políticos em sopeira, criada, cozinheira ou ama-de-leite… Mas a metáfora social está plasmada na denúncia dos excessos alimentares, seja da mesa farta do homem da Igreja ou do vício enraizado do alcoolismo no Zé Povinho, tolerado na jocosa expressão de “apanhar uma perua”. Os tipos sociais estão sintetizados nos figurinos para teatro, paradigmaticamente no efeminado “pêssego” e na cocotte “ceia” (O Reino da Bolha, 1897 e Formigas e Formigueiros, 1898), a merecer uma leitura pormenorizada dos seus propositados adereços. De outra ordem de comentário social, é a modesta etiqueta, ridicularizada, num serviço volante em bandeja, com chávenas de chá, torradas e acepipes de palito, em sarau da sociedade elegante que incluía membros da Casa Real.

Menus e Mesa

Na verdade, o serviço volante ou de mesa atinge um requintado código de etiqueta neste período, assim como as regras de comportamento durante uma refeição. Os banquetes de homenagem são momentos importantes de convívio e de representação social em Oitocentos. Rafael Bordalo não só deu notícia deles, como participou como decorador do espaço interior e das mesas, ou compondo graficamente menus, muitas vezes sendo conviva no evento.

Conhecem-se mais de uma dúzia de menus, personalizados, da sua autoria, muitos deles com autorrepresentação. São o resultado de encomendas oficiais, ou melhor, de amigos que aí se vêem caricaturados numa piada afectuosa, entre o sobredimensionamento de objectos da cozinha e da mesa. O humor estendia-se, também, ao nome dos pratos, enunciados na sua maioria em francês, conforme era regra “de bom tom” (também por isso ridicularizado), duplicando o humor.

O seu gosto pela decoração interior vinha até à mesa, utilizando muitas peças cerâmicas que produzira nas Caldas da Rainha, dispunha-as entre plantas e flores ornamentais, numa exuberância oitocentista, procurando surpreender pelo efeito pitoresco ou exótico, conforme era moda.

Além das suas naturezas mortas em cerâmica naturalística, que podiam servir na decoração das casas de jantar, Rafael Bordalo criou serviços de mesa, de café e de chá, muito divertidos, ou de jantar, em cuidada louça comum; até paliteiros, caricaturando o Visconde de Faria e o Marquês de Franco… Caso singular é a sua baixela e faqueiro para o Visconde de S. João da Pesqueira, em notável desenho neomanuelino, executado pelos joalheiros portuenses Reis & Filhos (1899-1900).

Assim se procura registar um inédito “olhar gastronómico” sobre a obra deste incontornável artista, que ao dar-nos o retrato alimentar da sociedade portuguesa do final do século XIX, tantas vezes caricatural, não se esqueceu de apontar a fome, sem perder o sentido de humor.