O Zé Povinho depois de Bordalo
Quando Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) criou o Zé Povinho, num desenho nas páginas centrais de A Lanterna Mágica, de 12 de junho de 1875, a sua carreira, apesar de promissora, estava apenas no início.
Com estes desenhos, Bordalo procurava confrontar os leitores com as situações de injustiça e as ruinosas negociatas políticas, onde a presença do Zé Povinho criava uma empatia e uma identificação, transportando o leitor para dentro do cartoon. Não será difícil imaginar que, ao expor estas situações, Bordalo quisesse provocar a indignação.
A figura do Zé Povinho foi, muito rapidamente, utilizada por outros cartoonistas, sendo provável que a primeira tenha sido feita por Sebastião Sanhudo, em 9 de setembro de 1878 (numa altura em que Bordalo ainda estava no Brasil), no jornal O Pae Paulino, do Porto, num desenho intitulado “Estes vícios e estes cães… são a glória d’este povo”, onde também sentiu a necessidade de o identificar no peito: “Zé Povinho”.

O Zé Povinho na Monarquia Constitucional
A partir dos anos 1880 assistiu-se a um enorme crescimento de jornais de humor, na senda do sucesso que O António Maria conseguia alcançar, e neles a figura do Zé é presença constante em jornais como O Penacho (1880), Maria Rita (1885), A Comédia Portuguesa (1886), Charivari (1886), A Marselheza (1887), Pontos e virgulas (1893), Os Pontos (1896), A Carantonha (1899), O Xuão (1908) ou O Raio (1909), em desenhos de Almeida e Silva, Celso Herminio, Leal da Câmara, Chico Lisboa, Julião Machado, Alonso, J. M. Pinto, Joaquim Guerreiro, entre muitos outros.
Chegou a dar o nome a jornais, como o Zé Povinho. Jornal de Combate, em julho de 1883 ou O Zé, um jornal de caricaturas publicado por Silva e Souza em novembro de 1910.
Apesar de ser desenhado por tantas mãos, em alguns casos ainda em vida de Bordalo, o seu criador, o carácter do Zé Povinho nunca se alterou significativamente: era aquele que assistia passivamente às negociatas políticas, que era enganado e maltratado pelos poderes. São muito raros os desenhos em que o Zé surge indignado e com uma atitude reativa.
O Zé Povinho durante a Primeira República
Esta situação muda com a instauração do regime republicano e o Zé Povinho vai aparecer feliz e esperançado, abraçando a República e exibindo o barrete frígio, em jornais como O Zé (1910) ou Os Grotescos (1912), em desenhos de Silva e Souza, Almada Negreiros ou Stuart Carvalhais, chegando mesmo a protagonizar o número de 22 de outubro de 1910 de L’Assiette au Beurre, dedicado a “La revolution portugaise”, pela mão de Leal da Câmara, colaborador do jornal desde que se tivera de exilar por causa das sátiras violentas ao rei.
Mas a mudança de regime não foi a solução esperada para todos os males e a condição que o Zé carregava de vítima dos maus governos vai fazer com que, quando a República substitui a Monarquia, em alguns jornais ele faça o percurso inverso e passe de republicano a monárquico. Em março de 1913, é criado o jornal O Thalassa (nome dado aos apoiantes da monarquia) pela mão de Jorge Colaço e de Alonso, onde o Zé vai atacar o novo regime. No jornal Papagaio Real, de 7 de abril de 1914, Almada Negreiros fez um desenho onde o Zé é montado pela figura da República, como se de uma besta se tratasse, que tem por legenda “O POISSON D’AVRIL… nascido em 5 d’Outubro”, referindo-se à República como uma grande mentira.
Nos anos que se seguiram à implantação da República vão coexistir Zés apoiantes dos dois regimes antagónicos.
No Estado Novo
Com o Estado Novo, o regime ditatorial não convivia bem com as críticas e a liberdade de pensamento, pelo que a figura do Zé foi desaparecendo – aliás, como os próprios jornais de humor.
A figura passou a ser tolerada nos teatros de revista e nos poucos jornais que sobreviveram, perdendo o seu lado político. No Sempre Fixe e nos Ridículos, o Zé surge, sobretudo em desenhos de Francisco Valença, Stuart e Zé Manel, a fazer lamentos pouco enérgicos sobre o custo de vida, apenas ganhando uma maior veemência ao alinhar-se com o regime nas críticas à política internacional, por exemplo ao isolacionismo imposto pela ONU. Terá sido nesta altura, quando a miséria mais apertou, que o Zé subiu às prateleiras de tascas e mercearias de todo o país em bonecos de fabrico popular (nas Caldas chamam-lhes “bonecos do Norte”, atirando talvez o seu fabrico para Barcelos) com a legenda “Queres fiado? Toma!”. O Zé traía, assim, a sua origem mais humilde para se aliar aos mais abonados que não queriam partilhar os seus rendimentos.
E como surge o Zé no 25 de Abril de 1974?
Foi preciso esperar pelo 25 de Abril de 1974 para assistir ao ressurgimento do Zé Povinho como figura política. Com a liberdade de imprensa, os novos títulos surgiram como cogumelos – por exemplo, A Gaiola Aberta, de José Vilhena, começou a publicar-se em 15 de maio, 20 dias após a revolução, mas outros títulos surgiram, onde o Zé se tornava mais malandro, por vezes em cartoons carregados de erotismo, ao sabor das novas liberdades de costumes, como é o caso de O Olho Vivo, de João Benamor, Riso Mundial, de Carlos Alberto Santos, ou Os Ridículos, de Ferra.
Neste período também os jornais passaram a ter mais atenção ao humor. Cartoonistas como João Abel Manta, António, Zé Manel, usaram o Zé e o humor como ferramenta pedagógica para exorcizar os desmandos da ditadura e explicar os tempos conturbados do PREC e como a vida em democracia funcionava, com as suas lutas partidárias e desejos ávidos de democracia e liberdade e, mais tarde, as promessas da integração europeia, perdendo depois algum protagonismo com a normalização da vida democrática, como se o seu papel de alertar o povo para a necessidade de uma cidadania ativa tivesse sido cumprido.
Nos nossos dias
Nos nossos dias, o Zé Povinho continua presente nas páginas dos jornais, principalmente pela mão de Cristina Sampaio, Nuno Saraiva, Luís Afonso, João Fazenda, António Jorge Gonçalves, André Carrilho, que recorrem a ele para comentar os tempos que vamos vivendo, por vezes em cartoons em movimento (Spam cartoon) e invadindo também o espaço digital e as redes sociais, pela mão de, por exemplo Henrique Monteiro (Henri Cartoon).
fontes documentais: